Wednesday, March 31, 2010

Lenda do Rio Ave



Não vou à procura das lágrimas da linda cabreira, mas a minha próxima caminhada será para conhecer mais uns segredos da Cabreira.

"Há muitos anos, há mesmo muitos, muitos anos, dezenas ou centenas de anos, chegou à Serra da Agra uma jovem, com um rebanho de cabras, vinda da Galiza. Sem ligar a fronteiras que, naquele tempo, não tinham a importância que hoje lhes damos, por ali andava a cabreira guardando o seu rebanho e admirando a paisagem que seduzia e encantava.

Por encostas e vales a jovem cabreira, bonita e formosa, ia contemplando a beleza local: os mantos verdes da vegetação, o azul transparente do céu, o amarelo cintilante do sol…. Nesta Serra do norte de Portugal, com 1200 metros de altitude, na passagem da província do Minho para a de Trás-os-Montes, reinava a paz. Os sons emitidos pelo rebanho, o chilrear das aves e o relinchar dos pequenos cavalos, os garranos, que habitavam a serra, eram uma melodia que sublimava as lindezas da natureza.

Mas um dia instalou-se a confusão. Cães que ladravam, cavalos que galopavam, homens que bradavam, trombetas que tocavam, setas e mais setas que assobiando cortavam o ar. Andavam caçadores pelas redondezas e a linda cabreira foi vista por um cavaleiro, também ele jovem, bonito e encantador. Deslumbrado com a sua formosura, o cavaleiro parou, admirou-a e com um grande sorriso, disse-lhe:


- Olá linda cabreira! Estou seduzido pela tua beleza. Os teus cabelos são como raios de sol, o teu olhar tem o brilho das estrelas e a tua doçura o reflexo do luar. Ela sentiu o mesmo encanto pelo cavaleiro e, envergonhada, respondeu-lhe:

- São os vossos olhos que me vêem assim. Senhor! Não mereço tanta admiração e o que me dizeis faz-me corar.

Vencido pela atracção que por ela sentia, o cavaleiro desceu da montada e deixou a caçada.

- Ouve, por ti, e só por ti, deixo os meus amigos e fico nesta serra só para te adorar!

E foi assim que começou, entre eles, uma linda história de amor. O cavaleiro e a cabreira esqueceram-se dos dias. Ali, sozinhos e felizes, sonharam, brincaram e fizeram juras, como se só eles existissem no Mundo. Mas, um dia, o cavaleiro sabendo que tinha trabalhos importantes a fazer e assuntos urgentes a tratar viu-se obrigado a partir.

- Ouve, minha princesa, eu vou ausentar-me, mas voltarei o mais depressa possível. Já não posso nem quero viver sem ti.

Suspirando de tristeza, a cabreira apenas confessou:

- Nem sei sequer quem és, nem tão pouco como te chamas.

O cavaleiro sorriu e abraçou-a, procurando dar-lhe confiança.

- Pouco importa, sou o homem de quem tu gostas e que também gosta muito de ti.

Mas digo-te que sou o Conde de uma vila próxima e em breve virei buscar-te para o meu palácio. Espera por mim!


Como numa jura, ela prometeu:

- Esperarei até ao fim da minha vida.

E esperou….

Os dias passaram, uns atrás dos outros, e a cabreira aguardava, impaciente, o seu amado. Recordava os dias felizes vividos com ele e não o vendo chegar ia entristecendo. Então, pensava:

- Preciso de o encontrar, de o ver, abraçá-lo, brincar e sonhar de novo… nem que para isso tenha de me transformar numa ave para sobrevoar as vilas mais próximas.

O tempo corria e o cavaleiro não voltava. Cada vez mais triste, quase morta de cansaço a cabreira começou a desesperar. As lágrimas inundaram-lhe os olhos e chorou. Chorou tanto, tanto, que as lágrimas foram formando um rio. As suas águas, que eram a dor e a mágoa da linda cabreira, percorreram as terras das redondezas.


Para ajudar este rio, a encontrar o cavaleiro, outros, mais pequenos vieram ao seu encontro. Da margem direita chegou o rio Pelhe que percorreu 20 quilómetros e o Este 52 Km. Da margem esquerda ocorreu o rio Selho que caminhou 21 quilómetros e o Vizela 47, trazendo consigo os rios Ferro e o Bugio.

Todos juntos, rios e riachos cobriram uma área de 1390 quilómetros quadrados. Correndo de nordeste para noroeste, o rio de lágrimas calcorreou 94 quilómetros. Com os rios mais pequenos banhou terras de Vieira do Minho, Povoa de Lanhoso, Fafe, Guimarães, Vizela, Santo Tirso, Lousado, Ribeirão e Trofa, espraiando-se em Vila do Conde, a terra do cavaleiro que jamais foi encontrado.

O povo comovido e entristecido com a malfadada história da jovem e linda cabreira, não quis que ela fosse esquecida. Assim passou a chamar-se à serra onde a cabreira e o cavaleiro se conheceram – Serra da Cabreira e ao rio de lágrimas – Rio Ave – Já que ela queria ser ave e voar.

Um dia, se puderes, visita a Serra da Cabreira e faz o percurso do Ave. Quem sabe … talvez ainda descubras as lágrimas da linda Cabreira."

Fonte: Livro "A Lenda do Rio Ave e da Serra da Cabreira"

Tuesday, March 30, 2010

O Belo


Numa caminhada o Rui do blogue Carris chamou-me a atenção para alguns topónimos curiosos que existem na Serra do Gerês. Quando depois voltou a referir-se a eles no seu blogue e referiu a existência de uma casa que é referência mundial reavivou-me a curiosidade. Sobre o topónimo Adpropeixe nada descobri, mas a citada casa é qualquer coisa. Independentemente das questões da sua construção - em PNPG e junto da Albufeira de Caniçada, é a arquitectura que quero saudar. Somos educados e formados para procurar o prático, mas é o belo que nos surpreende.

Friday, March 26, 2010

Construir a natureza

The Berg - construir uma montanha

Nos tempos da universidade um amigo meu, na pré-história do stand-up, brincava com os construtores de montanhas e com os políticos que construiam pontes para as quais depois "inventavam" rios. O absurdo da ideia soltava as gargalhadas. Construir a natureza era apesar de tudo mais absurdo. Infelizmente a ideia de inventar "rios" para justificar "pontes" já não nos pareciam tão inverosímil.

Foi por isso que ao descobrir uma proposta em se discute em Berlim não consegui deixar de soltar um gargalhada e recordar esses momentos.

Sobre a proposta nem sei o que pensar.





Thursday, March 25, 2010

Os nomes dos lugares - Matança



Quando caminhamos pela serra muitas vezes perguntamo-nos a origem dos nomes dos locais. Algumas são fáceis de compreender, outras permanecem um mistério por desvendar até que alguém nos dá uma pista.

Uma conversa fez-me recordar um daqueles achados felizes em que tropecei. Nunca consegui cruzar a informação com outras fontes e nem sei se as haverá. Com alguma sorte ainda haverá quem tenha escutado estas histórias à lareira. Não sei. Decidi partilhar esta informação porque sei como todos coleccionamos estas pequenas curiosidades. Pelo menos todos os que gostam de correr a Serra do Gerês mais pela busca dos seus segredos e menos pelo exercício físico.

Esta pode ser uma explicação para o topónimo Matança, o mesmo que na carta 31 dos anos 50 identifica uma elevação junto a Lamalonga.

"Dizem ter o privilegio das Arraias e que no tempo da sempre feliz e ditosa Aclamação vindo hum corpo de homens da galiza a furtar os gados de Portugal aos pastores e serra do Gerês acudiram os desta freguesia e mais alguns armados e foi ferido o combate que escaparam da morte mui poucos galegos excedendo em grande numero aos portugueses e destes mui poucos perderam a vida, cujo sittio concerva hoje a gloria e memoria de se chamar Matança que hé na ditta e onde chamam o Castinheiro e onde chamam as Lamas de Corrichão" Memórias Paroquiais de 1758 - Outeiro (1)

É natural que o topónimo anteriormente identificasse um local diferente, mas o combate deverá ter ocorrido algures por ali. O alto do Castanheiro é também identificado e junto aos Cornos de Candela existe um local chamado Currachã.

(1) As freguesias do Distrito de Vila Real nas Memórias Paroquiais de 1758; Viriato Capela, José; Borralheiro, Rogério; Matos, Henrique

Thursday, March 04, 2010

Vem por aqui

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio - Cântico Negro


Para mim este poema terá o rosto e a memória de Aurelino Costa com quem partilhei uma das viagens da minha vida. Foram 19 dias num autocarro de 2 andares a percorrer a Europa com destino São Petersburgo, na altura ainda Leningrado (Ленингрáд). Foram muitas as vezes em que o vi a declamar a solo ou na companhia da guitarra do João Moura e da viola do Veloso. Memórias de tempos de universitário.

Hoje, ao receber as notícias do dia, recordei-me dele. Recordei-me da forma agitada e energética com que o declamava. Uma energia de que estamos a precisar. No dia 16 de Abril estará na FNAC BRAGA a declamar Miguel Torga.



Monday, March 01, 2010

A galinha dos ovos de ouro


Notícias recentes sobre actividades de clubes e grupos informais que organizam actividades de pedestrianismo parecem dar razão aos mais pessimistas. O emaranhado jurídico tecido em torno da realização de actividades pedestrianistas é cada vez mais complexo e são cada vez mais as dúvidas que as certezas.

O acto de caminhar, promovido por clubes, associações e, fundamentalmente, por grupos informais aparentemente foi qualificado como actividade de animação turística. Sendo esta actividade própria (leia-se exclusiva) das empresas de animação turística.

"São consideradas actividades próprias das empresas de animação turística, a organização e a venda de actividades recreativas, desportivas ou culturais, em meio natural ou em instalações fixas destinadas ao efeito, de carácter lúdico e com interesse turístico para a região em que se desenvolvam"

Ainda que as actividades que não envolvam venda continuem possíveis às "associações, fundações, misericórdias, mutualidades, instituições privadas de solidariedade social, institutos públicos, clubes e associações desportivas, associações ambientalistas, associações juvenis e entidades análogas" a regulamentação conexa acaba por dificultar a sua organização.

É que todas as entidades que promovem, ou venham a promover, com carácter esporádico e sem natureza comercial, aquilo que é qualificado como animação turística dificilmente conseguirão cumprir os requisitos fixados. Ou, na complexidade dos processos e custos acessórios, acabarão por desistir da sua organização.

A dúvida sobre se não se trata de uma estratégia de preservar o mercado aos operadores turísticos é cada vez mais legítima. Facto que dá um outro enquadramento às taxas que o ICNB pretendeu/pretende cobrar.

Friday, February 19, 2010

Ainda sobre o POPNPG



Um dos blogues que tenho por hábito seguir - Carris, de Rui Barbosa - transcreveu uma citação de Tude de Sousa sobre o relacionamento das povoações com a floresta a propósito de um artigo sobre o POPNPG. Mais concretamente sobre a opinião que dele possui a União de Caçadores do Parque Nacional da Peneda Gerês. Tude de Sousa, foi um dos responsáveis pela florestação do Gerês na qual fez uma obra admirável. Deixou ainda escritas algumas obras que foram recentemente reeditadas pela CMTB e cuja leitura recomendo a todos que gostam do Gerês. Só que era também uma das partes do conflito. Ele foi, sem qualquer dúvida, um dos que melhor pensou a Serra, mas era também um funcionário dos serviços florestais. Ele de facto descreve uma relação algo predatório com a floresta, mas essa relação precisa também de ser enquadrada na envolvente cultural e económica.

A citação fez-me recordar uma reflexão que fiz após uma caminhada que fiz na Cabreira com o UPB. Na altura tinha relido o "Quando os lobos uivam" de Aquilino Ribeiro e tinha ainda fresco o discurso do advogado em defesa dos povos da serra.

O que na altura escrevi ganha hoje uma nova actualidade e lamento-o. O comportamento do PNPG e o ICNB acaba por não ser muito diferente do segido pelos serviços florestais. É mais uma vez a força da autoridade, em vez da razão. O enquadramento social é que é hoje diferente. Agora, em vez de GNR manda-se os juristas escrever umas coisas absurdas.

Esta revisão do POPNPG é profundamente errada porque ofende mais uma vez os mesmos. Tenho para mim que a ideia da área "wilderness" é absolutamente ridícula e artificial. A ser constituída só mesmo com o afastamento da povoação. Só que não estamos em Yellowstone, nem estamos no século XIX. De lá para cá as ciências sociais progrediram muito e já nem na gestão ambiental se aceita como boa prática a exclusão da actividade humana. Cada vez mais acredito que o PAN Parks se compreende melhor cruzando-o com as notícias sobre a situação financeira do ICNB. É uma estratégia de fuga para a frente. Um busca desesperada de financiamento. Venham os turistas endinheirados do Norte da Europa parece ser o resumo da estratégia.

Eu, quando reflecti sobre a Serra da Cabreira, terminei a dizer que todos somos Teutónio Louvadeus (a personagem de Aquilino que incendeia o pinhal plantado para se vingar dos Serviços Florestais). De uma forma activa ou passiva, vamos deixando que as coisas aconteçam à floresta. É por isso que considero importante as iniciativas do Rui Barbosa e de todos que fazem um bocado de barulho. É triste que tenhamos que adaptar o discurso que Aquilino pôs na boca do advogado dos povos serranos, um oposicionista, aos tempos actuais, mas é o que temos andado a fazer. O PNPG é que não se deveria hoje comportar como os Serviços Florestais de então. Não está em questão a obra realizada, mas sim a forma como foi feita.

Há um artigo "Parques e Populações: é Possível Conciliar? A Experiência de um Parque Nacional Europeu", de um investigador brasileiro, sobre a relação do PNPG com as populações que é interessante ler. Eu publiquei-o em 12 partes e fiquei surpreendido quando percebi que um dos co-autores era o anterior director do PNPG, na altura ainda em funções. Tratou-se certamente de mais um “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, no caso uma relação estranha entre o académico e o director.

Gostava de acreditar que as motivações transpostas para o POPNPG são da mesma natureza das convicções sinceras de Tude de Sousa em defesa da floresta. Eu não sou contra Teutónio Louvadeus, sou contra o que o faz revoltar.

Friday, January 29, 2010

Sair da prateleira

As botas já deviam estranhar tanta calmaria. Nunca estiveram tanto tempo remetidas à prateleira e deviam sentir a falta da poeira dos caminhos. De qualquer forma, no último Sábado baldei-me para o cursos sobre a história de Braga que estou a frequentar e meti-me aos caminhos com o UPB. Teria gostado mais de escrever “meti-me à serra”, mas ainda não foi desta. Apesar de tudo o trilho realizado, o PR12 de Terras de Bouro - "Moinhos de Santa Isabel do Monte", foi uma agradável surpresa. Terras de Bouro tem tudo para se tornar num dos melhores destinos de pedestrianismo em Portugal. A uma paisagem diversificada entre a montanha e a ribeira, ao PNPG, à história, à gastronomia junta-se uma rede de trilhos que se vai alargando de uma forma muito interessante. É verdade que troco qualquer trilho marcado por um daqueles que fui descobrindo com os companheiros de caminhas. A alegria de seguir as mariolas, descobrindo a serra por trilhos de sempre, é muito superior à de caminhar por trilhos homologados. Nos primeiros há um pouco de aventura. O esforço exigido é superior. É novamente o "subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga (...) e depois olhar" que Torga tão bem explicou. É por isso que compreendo a revolta em torno da Portaria n.º 1245/2009 de 13 de Outubro. Não sei o que farei se me impedirem de continuar a percorrer Gerês. Será que o ICNB possui vigilantes que chegue para a desobediência cívica que antevejo?

Wednesday, December 30, 2009

Projectos para 2010 e outras reflexões

algures no trilho do Refugio Goriz ao Monte Perdido

O ano 2009 está quase terminado e 2010 é já depois de amanhã. No ano que termina caminhei muito pouco. Foram várias as razões que me afastaram de uma actividade que me dá tanto prazer e da qual necessito para equilíbrio interno. Espero conseguir caminhar mais em 2010, ainda que pesa sobre os meus locais preferidos uma ameaça terrível. As taxas que o ICNB quer implementar ameaçam todos os que gostam de caminhar pelo PNPG. É mais que lógico que ninguém pagará 200 € para pedir uma autorização para caminhar. Mais ainda desconfiando que não terá essa autorização. Já fiz todas as tentativas para perceber a racionalidade destas taxas, mas não consigo. Simplesmente não consigo. Não sou por princípio contra a regulamentação das caminhadas em espaços naturais. Não posso é aceitar que em nome dessa regulamentação se queira simplesmente acabar com as actividades.

Recebi este Natal o livro Os Mais Belos Passeios na Montanha. São caminhadas duras e longas atravessando algumas delas parques naturais. São, na sua maioria, caminhadas com um grau de dificuldade técnico e físico muito superior ao que poderia realizar. Sem qualquer surpresa são quase todas completamente livres e sem qualquer taxa. Uma delas, a mais próxima, decorre parcialmente no PARQUE NACIONAL ORDESA - MONTE PERDIDO onde me foi tirada a foto acima. Um local ao qual pretendo voltar para completar o que não consegui na altura. Espero ter a oportunidade de contemplar a "escupidera" e conquistar o Monte Perdido. Para 2010 decidi subir a uma montanha e para já esta é a escolhida. O projecto começa por perder uns bons quilitos.

"Escupidera" com gelo e neve (Inverno) este ponto possui os maiores registos de mortalidade
da cordilheira pirinaica, com bom tempo dizem-me ser "fácil". No topo fica o 3º ponto mais elevado dos Pirinéus.

Wednesday, December 23, 2009

Um Conto de Natal - Miguel Torga

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas.Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José. 
Conto publicado por Miguel Torga em 1944 (Novos Contos da Montanha)