São apenas notas soltas sem qualquer compromisso de actualização. Como ao caminhar à beira mar onde os nossos passos não são mais importantes mas ficam registados entre duas ondas.
Friday, December 09, 2005
A ideia de um mito
Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavras,
aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.
Miguel Torga, Requiem
Barragem de Vilarinho da Furna, em 18 de Julho de 1976
A história é uma ciência extremamente ideológica. Isto pode parecer uma heresia, mas cada vez mais acredito neste facto. Ideológica, não no sentido de teses políticas mas sim na concepção e defesa de uma ideia.
Os jornais de hoje, em notícia da festa religiosa da sua padroeira, agora situada em S. João do Campo, voltam a contar a história de Vilarinho da Furna como a Aldeia Mártir do desenvolvimento. A ideia romântica que se tratou de de uma luta entre duas sociedades, entre o comunitarismo e a sociedade de consumo, nunca se apagará.
A aldeia , amostra de um passado pré-romano, representante de uma cultura castreja em Portugal, e, nas profundidades do tempo, da cultura dos povos pastores e ganadeiros indo-europeus, que graças ao isolamento dos grandes centros e, mais que tudo, ao condicionalismo geográfico que favorecia o pastoreio, subsistiu até ao seu abandono como organização comunitária e tornou-se um mito. Um mito de uma «espécie de estado independente com governo e legislação próprios» sob o regime de «democracia representativa», sem propriedade individual e, por consequência, sem classes, com uma alma introvertida de clã solidário e um conceito de vida assente na moral fraterna.
Estou certo que o «estado independente» de Vilarinho da Furna não resistiria ao progresso e à mudança. É irónico que a albufeira que a submergiu e condenou lhe tenha dado uma posteridade que possivelmente nunca gozaria de outra forma. Tal como o túmulo do soldado desconhecido, Vilarinho da Furna descansa como um símbolo.
A ideia de uma aldeia sem propriedade individual não tem qualquer fundamento, já que na realidade não era a propriedade que era comum mas sim o trabalho. E a sociedade representativa era na realidade muito autocrática com normas herdadas do direito romano que hoje já ninguém aceitaria. Só que permanece a ideia. Uma ideia que lhe suavizou os contornos e a glorificou como mártir em que parte de mim gostava de poder acreditar.
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PNPG,
Vilarinho da Furna
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