PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues
1. Património construído associado ao urso
"A relação das comunidades humanas com o urso originou um rico e único património construído. Este legado cultural é constituído, sobretudo, por estruturas dedicadas à captura do urso e por mecanismos de protecção dos bens contra os seus ataques. Como principais bens a proteger, destaca-se a produção de mel, actividade com grande importância na economia rural desde a Idade Média (HENRIQUES et al., 1999), e para a qual o urso constitui uma ameaça devido ao seu frequente hábito de destruir as colmeias para obter alimento (CLEVENGER & PURROY, 1991).
Os muros apiários são exemplos de arquitectura popular, destinados a assegurar a protecção das colmeias (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002). Com frequência, os muros apiários consistem em simples e toscos cercados de pedra seca com uma altura de cerca de 1 metro e dispostos em redor de uma área de dimensão variável, com o objectivo de protegerem os cortiços do fogo, bem como da pilhagem por parte de animais domésticos e selvagens de média dimensão, como o texugo (Meles meles) (Figura 1).
"A relação das comunidades humanas com o urso originou um rico e único património construído. Este legado cultural é constituído, sobretudo, por estruturas dedicadas à captura do urso e por mecanismos de protecção dos bens contra os seus ataques. Como principais bens a proteger, destaca-se a produção de mel, actividade com grande importância na economia rural desde a Idade Média (HENRIQUES et al., 1999), e para a qual o urso constitui uma ameaça devido ao seu frequente hábito de destruir as colmeias para obter alimento (CLEVENGER & PURROY, 1991).
Os muros apiários são exemplos de arquitectura popular, destinados a assegurar a protecção das colmeias (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002). Com frequência, os muros apiários consistem em simples e toscos cercados de pedra seca com uma altura de cerca de 1 metro e dispostos em redor de uma área de dimensão variável, com o objectivo de protegerem os cortiços do fogo, bem como da pilhagem por parte de animais domésticos e selvagens de média dimensão, como o texugo (Meles meles) (Figura 1).
No entanto, em algumas regiões da Península Ibérica, nomeadamente na Cordilheira Cantábrica, os muros apiários são edificações monumentais mais elaboradas, cujo principal objectivo que se lhes atribui é impedir a entrada no interior do recinto de um possante apreciador de mel, o urso (TORRENTE, 1999; BOUZA, 2002). Estas estruturas, conhecidas em Espanha por colmenales, alvarices ou cortinos, são identificáveis pela execução de muros com face externa homogénea e altura por vezes superior a 3 metros, e pela existência de um capeado projectado para o lado exterior do recinto, que forma um rebordo no topo ou a ¾ da altura da parede. Por vezes é provida de uma sólida porta que permite a entrada do apicultor, mas na maior parte dos casos o interior do recinto torna-se apenas acessível através da utilização de uma escada (BOUZA, 2002) (Figura 2).
Figura 2. Silha ou muro apiário destinado à protecção face ao urso,
Serra da Queixa, Ourense, Espanha.(fotografia de F. Álvares)
Em Portugal encontram-se identificados muros apiários, ainda que muitas vezes em avançado estado de degradação, que apresentam uma construção elaborada e robusta, caracterizada pela execução de muros dobrados com cerca de 1 m de espessura e mais de 2 m de altura, e rematados por placas avançadas para o exterior (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002). As características de construção destas estruturas permitem enquadrá-las na tipologia dos muros apiários existentes no Norte de Espanha, que se destinam à protecção face às investidas dos ursos. Desta forma, constituem um importante testemunho material da presença histórica desta espécie em Portugal e da sua relação com as comunidades rurais. Dependendo da região do país, estas estruturas são vulgarmente denominadas silhas, colmeais, muros ou alvarizes (HENRIQUES et al., 1999). No presente trabalho optámos por designá-las como silhas, de forma a evidenciar as características estruturais que as parecem destinar à protecção face ao urso, e assim distingui-las dos muros apiários simples de menores dimensões.
A função destas estruturas como estando associada ao urso encontra-se actualmente perdida na memória colectiva da maioria das comunidades locais. Porém, foram recolhidas várias referências documentais do século XVIII que atestam a construção de silhas pelos habitantes do Norte de Portugal, no intuito de proteger as suas colmeias face à frequente destruição provocada por estes animais (documento 1, 4 e 5, no Anexo I).
A prospecção de campo e a recolha de registos fotográficos e bibliográficos (p.e. HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002) permitiu confirmar vestígios materiais de muros apiários com características atribuíveis a silhas, num total de 28 concelhos de Portugal. Acrescese ainda mais 6 concelhos onde a presença deste tipo de estruturas se considera provável, tendo por base somente testemunhos orais (Figura 3). De forma geral, as áreas com edificação destas estruturas parecem coincidir com as principais regiões montanhosas do Noroeste de Portugal (Serras de Arga, Soajo, Amarela, Gerês, Cabreira, Barroso, Larouco, Alvão, Padrela), o extremo Norte do Distrito de Bragança (Serras da Coroa e Montesinho) e as bacias do médio Douro e Tejo, junto à fronteira com Espanha. Existem ainda evidências não confirmadas, da edificação de muros apiários semelhantes a silhas na Beira litoral (Serras da Arada e Montemuro), no Maciço Calcário Estremenho (Serras do Sicó e Candeeiros) e na bacia do médio Guadiana (Figura 3).
Figura 3. Concelhos com edificação confirmada ou provável de muros apiários com
características estruturais atribuíveis a silhas (destinados à protecção face ao urso).
Na Península Ibérica existem também registos da construção de engenhos destinados a dar caça ao urso. Em Espanha, é referida a utilização de covas armadilhadas especificamente construídas para a captura deste animal (PIDAL & DE QUIRÓS, 1897; JUSTO MÉNDEZ, 1993; BOUZA, 2002), apesar de em Portugal não se ter conhecimento de fontes documentais que comprovem a sua utilização. Nas Astúrias conhece-se ainda a utilização de pequenas construções em pedra destinadas à captura do urso, com o nome popular de pezugos. Nestas armadilhas o chamariz consistia na deposição de um cortiço de abelhas assente numa plataforma de madeira que, ao cortiço ser retirado, accionava a queda de uma grande pedra ou tronco sobre o animal (Figura 4; TORRENTE, 1999; BOUZA, 2002). No que respeita a Portugal foi possível recolher uma referência documental do século XVIII que descreve como os habitantes da Serra do Gerês davam caça a este carnívoro através de um engenho armadilhado com um tronco de árvore e que utilizava um cortiço de mel como isco (documento 1, no Anexo I). A descrição desta técnica de caça permite associá-la ao pesugo, cuja utilização se encontrava somente referenciada para determinadas áreas das Astúrias (BOUZA, 2002). No entanto, as prospecções de campo realizadas até à data não permitiram obter qualquer evidência de vestígios materiais destas estruturas cinegéticas em Portugal. Por fim, encontra-se referida com frequência na documentação medieval, uma armadilha de caça destinada ao veado, javali e urso, denominada madeiro. Este tipo de armadilha já aparece mencionado nos forais da Beira do século XI, porém não se conhece qualquer descrição detalhada do seu modo de funcionamento."
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