Sunday, November 21, 2010

Presença histórica do urso em Portugal 5

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

2. Presença histórica e extinção do urso em Portugal

"A ocorrência histórica do urso por todo o território nacional é comprovada pela toponímia, quer integrando o vocábulo osso, ou utilizando uma grafia actualizada[4]. No que respeita a fontes documentais, os registos mais antigos relativos à presença da espécie em Portugal encontramse nos forais do século XI e XII, e relacionam-se com o facto de a caça grossa estar sujeita ao tributo de condado ou montaria. Este tributo obrigava os caçadores a entregar, ao rei ou seu representante, a parte mais nobre de cada peça de caça maior abatida: regra geral, do javali ou porco-montês davam o corazil ou espádua; do veado, corço ou cabra-brava entregavam a perna, e do urso as mãos[5]. Nas inquirições de 1258, que, basicamente, pretendem apurar os direitos devidos ao rei, ficou consignado esse imposto medieval aplicado à caça ao urso, em várias freguesias do Noroeste do país (AZEVEDO, 1977; GONÇALVES, 2006).

Figura 4. Representação de um pezugo asturiano, armadilha
destinada à captura de urso (retirado deBouza, 2002).
O urso, juntamente com outras espécies como o javali, possuía desde o início da Idade Média um lugar de destaque como alvo de uma caça de entretenimento e, em simultâneo, de preparação guerreira, por parte dos monarcas e da classe mais nobre. Desta forma, e ao contrário por exemplo do lobo (DOMINGUES, 2005a), o urso foi, desde cedo, alvo de alguma protecção por parte da monarquia. São frequentes os documentos que fixam coutadas, em favor do rei ou de algum nobre poderoso, e onde se condiciona a caça, não só ao urso, mas também ao javali, veado e até a caça miúda como o coelho, a lebre e a perdiz.

Ao longo do século XV o urso ainda estava presente a Norte do rio Douro e em vários locais distribuídos pelo interior do país, nomeadamente na Beira Interior (Pinhel, Trancoso e Ribacôa) e no Alentejo (Moura e Portel), onde existem referências documentais à sua caça ou abundância (BAETA-NEVES, 1967). Contudo, é a partir deste século que o urso aparenta começar a rarear em território português, principalmente na metade sul do país, devido à perseguição directa e à destruição das extensas manchas florestais onde se abrigava (BAETA-NEVES, 1967; DEVYVARETA, 1986). Como consequência, são publicados vários diplomas condicionando a sua caça, diplomas esses de âmbito genérico e promulgados pelos monarcas portugueses, e alguns deles possuindo o valor de lei ou ordenação geral do reino. A título de exemplo, D. João I, por carta de 5 de Fevereiro de 1412, proibiu a caça de ursos, porcos monteses e cervos nas comarcas de Entre-Tejo-e-Guadiana e Estremadura (BAETA NEVES, 1980). Posteriormente, seu filho D. Duarte (1433-1438), publicou uma lei que impunha uma coima de mil libras a qualquer que matasse um urso por todo o reino, sem licença de el-rei (ORDENAÇÕES AFONSINAS, 1984), no que provavelmente constitui uma das primeiras leis direccionadas à protecção de uma espécie silvestre, a nível nacional. No entanto, o povo insurge-se com frequência contra as coutadas e a proibição de caça de animais bravios, nomeadamente do urso, por estes lhe causarem avultados prejuízos nos gados e nas colheitas (BAETA NEVES, 1980).

Por isso, e apesar de condicionada, a perseguição ao urso por parte das comunidades locais continua a ser intensa, nomeadamente através da sua caça e da destruição do habitat por incêndios (documento 1, 2 e 3, no Anexo I). Como resultado, nos finais do século XVI a presença de urso em Portugal é considerada por vários autores como estando somente confinada às montanhas fronteiriças do extremo Noroeste, nomeadamente à Serra do Gerês (LEITE DE VASCONCELOS, 1936; BAETA-NEVES, 1967).

Se a presença histórica do urso em Portugal é uma realidade inquestionável, já a data da sua extinção constitui um facto deficientemente investigado. Documentos do século XVIII referem, com precisão, a morte em 1650, do que tem sido considerado o último exemplar na Serra do Gerês e, em simultâneo, em Portugal (documento 1 e 2, no Anexo I). O único estudo específico que aborda a presença e extinção desta espécie em Portugal (BAETA-NEVES, 1967), baseia-se nestes registos para apontar a data de extinção do urso em território português, a qual tem vindo a ser aceite junto da comunidade científica, em trabalhos recentes (SANTOS-REIS & MATHIAS, 1996; MATHIAS et al., 1998; CABRAL et al., 2005). No entanto, a pesquisa documental e bibliográfica, principalmente em autores espanhóis, realizada no âmbito do presente trabalho apresenta evidências da sobrevivência do urso em território português para além do século XVII e até datas surpreendentemente recentes, em particular na região fronteiriça compreendida pela Serra do Laboreiro (Melgaço), as Serras do Gerês/Larouco (Terras de Bouro/Montalegre) e a Serra de Montesinho (Bragança/Vinhais).

No que diz respeito ao século XVIII, um documento de 1744 proveniente de Pincães, parece referir ainda o urso como presente na Serra do Gerês, embora perto de se extinguir face à intensa perseguição que os habitantes locais lhe moviam (documento 3, no Anexo I). Também o Padre João Barroso Pereira, refere a presença de ursos na região de Salto (Montalegre) num documento de datação indeterminada, mas que parece corresponder ao século XVIII (documento 5, no Anexo I). Em território espanhol, FERNANDEZ DE CÓRDOBA (1964) e PIÑEIRO MACEIRAS (2000) citam várias fontes documentais do final do século XVIII, que referem ainda a abundância de ursos nas montanhas que ladeiam os rios Tâmega e Lima nomeadamente Requiás (Muíños) e Verín, situados junto ao limite dos concelhos de Montalegre e de Chaves, respectivamente.

Para o século XIX, NORES & NAVES (1993) refere que a obra de 1866 de Fernando Fulgosio, “Cronica de la província de Orense”, atesta a presença do urso na vertente espanhola da Serra do Laboreiro e da Serra do Gerês no primeiro quartel do século XIX. Também TABOADA CHIVITE (1971) menciona que, em 1825, um habitante de San Pedro de la Torre (Sierra do Laboreiro) reclamou ao Concelho Real os prejuízos efectuados pelos ursos, ao que lhe foi concedida uma autorização para os matar. GRANDE DEL BRIO et al., (2002) apresenta evidências documentais de vários ursos abatidos na vertente espanhola da Serra de Montesinho, durante o final do século XIX. Para o território português, encontramos outras referências documentais que indicam também a presença de urso no decorrer do século XIX. Na região de Bragança, foi publicada em 2 de Março de 1835, no jornal manuscrito “Choronica de Bragança”, uma notícia que aparentemente alude à programação de uma caçada ao urso na Serra de Montesinho (documento 6, no Anexo I). Além disso, e a corroborar os registos atrás mencionados, Gabriel Pereira refere que até meados do século XIX ainda os ursos ocorriam, de forma irregular, nas montanhas do Minho e Trás-os-Montes (documento 7, no Anexo I).

Porém, as últimas referências ao urso na região fronteiriça do norte de Portugal datam do início do século XX. GRANDE DEL BRIO et al., (2002) menciona evidências documentais da sua presença em 1905 e 1920 na região de Lubián e Sanábria (Zamora) respectivamente, ambas situadas a menos de 10 km da fronteira portuguesa na Serra de Montesinho. JUSTO MÉNDEZ (1993), apesar de não citar as fontes documentais ou orais em que se baseia, refere que desde inícios do século XX até 1930 ainda subsistiam alguns exemplares na zona fronteiriça constituída pelas serras do Gerês e Larouco. Em particular, menciona que em 1915 eram ainda avistados ursos com alguma frequência na zona de Portela do Homem (Serra do Gerês), e que em 1920 “fue muerta una osa, acompañada de dos crias, que los cazadores sorprendieron en la sierra de Larouco, entre Baltar y Villamayor de Gironda”, junto à fronteira portuguesa. O último registo confirmado de urso nas montanhas fronteiriças do Noroeste de Portugal, é todavia mais recente e diz respeito ao abate de um urso, em Junho de 1946, por Camilo Lloves Gonzalez, habitante de Couceiros na Serra do Laboreiro, a menos de cinco quilómetros da fronteira portuguesa de Melgaço. Este facto, publicado no jornal “Pueblo Galego” de 17 de Junho de 1946 e frequentemente citado em fontes bibliográficas posteriores (e.g. FERNANDÉZ DE CÓRDOBA, 1964; TABUADA CHIVITE, 1971; PIMENTA, 2001, DOMINGUES, 2005b), foi confirmado por um dos autores do presente trabalho (F. Álvares) através de uma entrevista a Camilo Lloves em 4.10.1996, o qual, apesar dos seus 80 anos de idade, relatou em pormenor os acontecimentos. O urso abatido era um macho com 102 kg (possivelmente sub-adulto) e, na altura, dizia-se que nessa região andariam três ursos que com frequência destruíam colmeias e silhas, e dos quais um foi o que veio a ser abatido."


4 Rio dos Ossos (Melgaço / Lisboa / Oliveira de Azeméis); Casal dos Ossos (Lisboa); Vilar dos Ossos (Vinhais); Valdossos (Vila Nova de Famalicão); Serra da Ossa (Alentejo); Valdossa (Alijó); Osseira (Caldas da Rainha / Óbidos); Ursa (Albufeira / Alcácer do Sal / Almodôvar / Alportel / Figueira de Castelo Rodrigo / Góis / Proença-a-Nova / Santiago de Cacém / Sertã / Vila Viçosa); Cova do Urso (Arganil); Covão do Urso (Beira Baixa); Pego d’Urso (Sátão); Pia do Urso (Batalha); Pinhal do Urso (Leiria / Montijo); Vale do Urso (Fundão).
5 “si fuerit ad venationem et mactaverit porcum, dabit spatulam; de cerbo, de capra montesa, de corzo, dabit pernam; de ursso, dabit manus.”

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