Wednesday, November 24, 2010

A sentença do Monte de Vilarinho


fotos do desmontar da aldeia - Manuel Antunes

Há uns anos fiz uma caminhada nas encostas de Vilarinho da Furna com um natural da aldeia e tive a oportunidade de escutar algumas histórias interessantes. Regressado a Braga não tardei muito em procurar o livro do Jorge Dias para saber mais sobre uma aldeia da qual conhecia pouco mais do mito e umas pedras. 

Entre as diversas histórias que escutei então é, em parte, o objecto desta entrada e diz respeito à questão da aldeia com o Estado Português a propósito do Monte de Vilarinho da Furna. Foi junto ao muro, numa portela que se abre para o Vale do Cabril, que a escutei. No mesmo local onde população terá feito frente aos serviços florestais e à GNR em defesa dos seus pastos.

Quem caminha pela zona não pode deixar de ficar intrigado quando descobre o que deveria ter sido um estradão florestal. Eu na preparação dessa caminhada não tinha suspeitado da sua existência e já me preparava para uma subida dura até ao topo da Louriça.  Esse estradão, que terminou subitamente quando encontrou o muro da aldeia mas continuaria a rasgar os montes até à fronteira, a aldeia ainda deteve. A barragem, que lhe submergiu os campos agrícolas e impossibilitou a existência, já não conseguiria vencer. Por ironia, a barragem começou a ser construída no mesmo ano em que no Tribunal de Vila Verde venceram os Serviços Florestais. Sobre o muro, Jorge Dias, na sua monografia,  esclarece que terá sido pensado por um dos Zeladores de Vilarinho e realizado por toda a aldeia para delimitar os seus terrenos.

Durante algum tempo procurei informação sobre esta questão sem grande sucesso. Recentemente, do Professor Manuel Antunes (AFURNA), recebi o texto de uma questão anterior e que gostava de partilhar.

A primeira sentença diz respeito à posse dos montes de Vilarinho e sobre o estradão fica a indicação do processo. Fica ainda indicado um outro processo onde o Estado Português, já em 1995, por acordo entre as partes, reconheceu novamente a posse aos herdeiros de Vilarinho da Furna.

Sentença em que o Estado Português é condenado a reconhecer a propriedade privada do Monte de Vilarinho da Furna

Em finais de 1945, os Serviços Florestais começaram a fazer plantações no terreno de Vilarinho, aforado pela escritura de 1895, no local chamado Cova de Mámuas. Imediatamente, por intermédio do Advogado Dr. José Catalão, foi requerido embargo desse procedimento e, em 3 de Janeiro de 1946, foi interposta uma acção cível contra o Estado Português. A sentença, bem paradigmática, que aqui se reproduz, tem a data de 15 de Outubro de 1962. Vieram as A. A. Delfina Gonçalves Neves, Maria Angelina Rodrigues e Maria Fernandes Lojas, todas viúvas, proprietárias, do lugar de Vilarinho da Furna, do concelho de Terras de Bouro, desta comarca, hoje representadas pelos seus herdeiros devidamente habilitados pela decisão proferida nos autos apensos de habilitação, Maria Gonçalves Neves, António José Gonçalves Neves, Ana Rosa Gonçalves Neves, Tereza Gonçalves Neves, Angelina De Jesus Gonçalves Neves, João Gonçalves Neves, Manuel António Dias, Ana Rosa Dias, Maria Joaquina Dias, Ana Rosa de Azevedo Barroso, Maria Joaquina de Azevedo Barroso, António de Azevedo Barroso, José Maria de Azevedo Barroso, Claudino Azevedo Barroso e Manuel de Azevedo Barroso, propor a presente acção com processo sumário contra o Estado, representado pelo Mº Pº, alegando, em resumo, que por escritura de 17 de Agosto de 1895, junta a fls. 7, adquiriram o domínio útil de uma área inculta, que até à referida data, fora baldio municipal, situada nos limites do lugar de Vilarinho da Furna e que, no seu todo, confronta do sul com o Monte dos moradores de S. João do Campo e com a mata do Gerês, do nascente com a mata do Gerês, do norte com montes dos moradores de Vilarinho da Furna e pelo poente com terrenos da freguesia de Brufe e outros, sendo a linha divisória desta área emprazada constituída pela série de pontos indicados na escritura de emprazamento que, por certidão se juntam.

A transmissão deste domínio para as A. A. e demais comproprietários foi devidamente registada. Compreendido na área emprazada de todo aquele montado existe no seu lado ou orla nascente um terreno inculto com árvores e tojo denominado “Cova de Mamua”, inscrito na matriz sob o artº 3717 de fls. 9 – doc. de fls. 9, junto aos autos apensos de embargo.

A linha divisória deste terreno é, do lado nascente por onde confina com a Serra do Gerês, sujeita ao Regime Florestal, constituída pelo alinhamento dos pontos seguintes, a contar do sul para o Norte, desde o Rio Homem: Rio Homem, Chã das Ovelhas, Cabeço da Pousada, Outeiro Agudo, Corrainhas, conforme se lê na escritura de emprazamento e no auto de medição e escritura juntos.

Como comproprietários do aludido terreno estão na sua posse, pacífica, pública e contínua, sem a menor oposição desde 17 de Agosto de 1.895.

Assim, concluem por pedir que a acção que propõem seja julgada procedente e provada e, em consequência, lhes seja reconhecido o domínio, ou condomínio sobre o aludido terreno e a sua posse exclusiva desde 17 de Agosto de 1895, reconhecendo-se como linha divisória a indicada, e nos aludidos documentos de vistoria, medição e emprazamento de 1.895.

Citado o Magistrado do Ministério Público como representante do Estado veio, tempestivamente, contestar mas só depois de prolongadas e sucessivas prorrogações do prazo para o fazer.

Em resumo, diz o Mº Pº que se trata, na verdade, de terrenos particulares, simplesmente encontram-se sujeitos ao Regime Florestal pelo Dec. de 9-9-904 e que os limites de tal montado em questão são os fixados na nota cadastral que indica.

O Tribunal é competente e não existe no processo qualquer nulidade, ou excepção que obstem à apreciação do mérito da causa.

A questão a dirimir é, parece-me, meramente de direito e pode ser decidida com segurança nesta altura.

Assim, atento o que se dispõe no artigo 510º alínea c) do Cód. do Processo Civil passo a conhecer directamente o pedido.

E conhecendo:

A questão suscitada no articulado cifra-se, a meu ver, na interpretação a dar aos artºs 1º, 2º, 3º e 4º do Dec. de 9-9-904.

A questão dos limites, tal como é posta, não tem qualquer interesse. Não diz o Estado que além dos limites que aponta não tenham os terrenos a natureza de particulares. Parece mesmo dar a entender que se trata sempre de terrenos desta natureza.

O artº 2º do Decreto referido submete ao Regime Florestal “os terrenos compreendidos ..... aos povos de Vilarinho das Furnas”. “Primum conspectum” poder-nos-ia parecer – “ut” Magistrado do Mº Pº que a esse regime ficaria, então, submetido o terreno em questão. Logo, porém, a letra deste artigo afasta tal conclusão, na medida em que fala de “Povos de Vilarinho das Furnas”.

A escritura de 17-8-95, transmitiu, sem dúvida, para os A. A. a propriedade e posse do terreno a que vimos de aludir, sendo certo que os A. A. e demais comproprietários são pessoas singulares.
Admitindo, porém, que assim não é, da leitura dos artigos 3º e 4º infere-se que a submissão ao Regime Florestal dos terrenos a que o artigo 2º alude não funciona “ipso iure”. Ou se tornava necessária uma expropriação ou então uma declaração de submissão voluntária ao regime florestal dos possuidores, o que é compreensível pois, se assim não fora cairiamos no confisco. Quer, porém, a possibilidade da expropriação quer a feitura dessa declaração teria de ser precedida de uma “intimação” aos possuidores. Sucede, então, que nunca tal intimação foi feita por quem quer que seja.
No artigo 3º declarou-se a utilidade pública desses terrenos. Este preceito é nem mais nem menos que uma das “condições de fundo” para que a expropriação pudesse vir a ser decretada.

É sabido que na Constituição Política em vigor (artº 43º, § 1º) se consagra o princípio da inviolabilidade do direito de propriedade. Todavia, se o interesse público postular a necessidade de que o proprietário seja privado ou despojado daquilo que lhe pertence, impõe-se como corolário daquele princípio que a este deva ser paga uma indemnização, cujo montante se ajuste tanto quanto possível ao valor real dos bens de que é despojado, ou seja, uma quantia destinada aressarci-lo dos prejuizos que lhe advêm de tal privação.

É exactamente nisto que consiste a expropriação por utilidade pública, sem dúvida, a mais importante restrição de direito público. E é justamente o facto de ao proprietário dever ser atribuida uma indemnização, que afigura se distingue da figura do confisco ou expoliação.

Compreende-se, então, a necessidade de rodear o processo expropriativo de particulares cautelas, estabelecendo, por um lado, condições de fundo que pressupõem a declaração de utilidade pública e, por outro lado, requisitos de forma.

O artº 3º é nem mais nem menos do que uma disposição que prevê a utilidade pública e, portanto, uma das condições de fundo para que a expropriação pudesse vir a ser decretada (neste sentido, vide o nosso livro Expropriações por utilidade pública, a págns. 6 e 7).

Não havendo, então, qualquer expropriação nem qualquer declaração (opção) de submissão voluntária ou querida pelos possuidores do terreno em questão, é manifesto que eles ainda se encontram no Condomínio dos Autores o que lhes foi conferido pela escritura de 17-8-1895 e depois do seu domínio pleno por remissão do foro em causa.

Por tudo o exposto, julgo a presente acção inteiramente procedente e provada e, por isso, reconheço o domínio ou condomínio dos A. A. sôbre o terreno em questão e a sua exclusiva posse desde 1895 (17 de Agosto), condenando o Estado a reconhecer esse condomínio dos A. A. sôbre o mesmo terreno e também a reconhecer como linha divisória a indicada no artigo 4º da petição, nos documentos de vistoria, medição e emprazamento de 1895, abstendo-se da prática de actos ofensivos do domínio e posse dos A. A. e demais comproprietários.(Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, Acção Sumária nº 4226 – 2ª Secção)

O Professor Manuel Antunes esclarece ainda que:

Não se ficaram por aqui as investidas do Estado contra o Monte de Vilarinho. Assim, em 17 de Agosto de 1967, para fazer um estradão entre o Lindoso e a Portela do Homem, os Serviços Florestais derrubaram a parede de vedação, que separa os terrenos de Vilarinho da Furna e do Lindoso, começando a abrir um caminho florestal. Procedeu-se ao imediato embargo da obra e consequente acção judicial, sendo o Estado, mais uma vez, condenado por sentença de 31 de Julho de 1969 (Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, Acção Ordinária nº 5.454 de 1967 – 2ª Secção).

A posse destes montes estaria ainda na origem de um conflito entre a AFURNA - associação que representa os proprietários do Monte de Vilarinho - e um Director do Parque Nacional da Peneda-Gerês. No âmbito do qual  a posse, por acordo entre as partes, da propriedade foi novamente confirmada no Tribunal de Círculo de Braga, em 13 de Outubro 1995,  E o PNPG, pagou, então, à AFURNA a quantia de seiscentos mil escudos para a compensar dos trabalhos de corte e extracção de madeiras do Pinhal da Bouça da Mó (Tribunal de Círculo de Braga, Acção Ordinária nº 89/94 – 1º Juizo).

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