Tuesday, January 22, 2008

O fósforo do Teotónio Louvadeus

“Não interessa! A Aldeia tal como se acha hoje com um atraso de muito séculos sobre o mundo civilizado, queda indiferente à aventura. Para o serrano, com a sua casa de colmo ou telha-vã, tamancos de amieiro couraçados de seteiras de ferro, metido dentro da cachupa de burel, que, espécie de saco descosido, deve ser o feio e prático manto do turdetano, isto é, do aborígene, assoando-se para o chão com o premir uma venta e depois outra, e limpando-se ao canhão da vestia, dormindo na promiscuidade de cama de barqueiro, com o pesado carro céltico de rodas fixas, panelas de barro em vez de potes de ferro, creosene em vez de luz eléctrica, o que condiz é a serra como está, Doutro modo, para ele é um contra-senso... Na minha opinião humilde e desambiciosa, opinião de quem vê o homem através da sua humanidade, o que há a fazer é plantar a civilização nas aldeias, uma civilização digna do século XX, antes de pensar ir para a serra mudar-lhe a natureza.”
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“...è pena que Vossas Excelências queira entrever o problema somente pelo lado do aproveitamento. Ainda por este lado há muito que se lhe diga. Mas pois que o lado moral, diremos psicológico, não lhes interessa, essa ignorância é muito susceptível de lhes causar grandes amargos de boca.”
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“Ora essa! – respondeu o Dr. Rigoberto. – A minha opinião e, salvo seja, a do meu constituinte é que a serra renderia, no futuro, economicamente dez, vinte vezes mais do que está, abandonada à lei das estações, rapada hoje pelas sacholas dos roçadores, espontada de vegetação nova, na Primavera, pelos gados. Mas havia de ser o povo, guiado pelos Serviços Florestais, assistindo em tudo do Estado, que deveria proceder arborização, sem o obrigarem a perder o sentimento de liberdade que ali se desfruta. Condicionassem o aproveitamento das madeiras e mais indústria silvícola, deixassem-no ficar, ao menos nominalmente, o dono dela. Ou, então elevassem os povos a um grau tal de desenvolvimento que essa circunstância se tornasse menos um conquista sobre a pobreza dos serranos do que uma necessidade ou encontro com uma vida melhorada e progressiva. No estado em que a população se acha, rude, penurienta, de nível de vida baixíssimo, a serra é-lhe absolutamente indispensável porque só assim corresponde ao seu atraso.”
Quando os lobos uivam - Aquilino Ribeiro


planta do projecto de florestação da Serra da Cabreira


Eu nunca tinha caminhado na Serra da Cabreira mais do que pequenos percursos. Apesar de a ter tão perto, é uma serra que não ainda conheço. No Sábado passado a caminhada com o UPB deu-me a oportunidade para lá caminhar. Tinha uma ideia do percurso e, como não gosto muito de caminhar por estradões, as minhas expectativas não eram muito elevadas. Confesso que me surpreendi e fiquei com vontade de lá voltar. A vista desde o Talefe é surpreendente. Umas das melhores sobre o PNPG.

Na caminhada duas coisa despertaram a minha curiosidade: umas ruínas de uma casa dos Serviços Florestais perto do Talefe e uma conversa no café da aldeia à hora da “sopa”. Numas chãs praticamente despidas de árvores, a casa chamara-me a atenção pela contradição. No café, na tal conversa com algumas pessoas da aldeia, confirmei as minhas suspeitas. Dois grandes incêndios, nas décadas de 70 e 80, teriam deixado aquelas chãs praticamente sem vegetação.

Recordei-me então do que li sobre a Serra d’Arga. Recordei-me do “Quando os lobos uivam” do Aquilino Ribeiro, a quem fui buscar as citações. Recordei-me das histórias da revolta dos povos do Gerês contra os Serviços Florestais nos finais do século XIX. Recordei-me do amigo que um dia me surpreendeu ao dizer-me que, para ele, a história da florestação tinha sido um erro enorme, um erro muitas das vezes vingado pelo fogo.

A casa e a conversa levaram-me a reflectir sobre a floresta e como ela foi plantada. É verdade que após um longo processo histórico desflorestação Portugal precisou de inverter a situação. Não apenas por uma boa gestão dos recursos florestais, mas fundamentalmente para evitar os fenómenos erosivos. Nos finais do século XIX Portugal teria um coberto vegetal inferior a 25% do actual. Foi essa a preocupação que presidiu à criação dos Serviços Florestais em 1886, com o início dos trabalhos de arborização nas serras do Gerês e da Estrela em 1888. Só que o processo de arborização nem sempre foi o mais feliz. E foi muitas das vezes feito contra as populações. Não falta quem afirme que a florestação foi um processo mal concretizado, mal amado e que apenas nos deixou os montes cheios de pinheiros. Contribuindo dessa forma para o abandono dos espaços rurais. Outros salientam a dimensão da obra realizada e atribuem a maior responsabilidade da expansão do pinheiro aos pequenos proprietários. O maior equilíbrio da opinião dos segundos fará mais sentido. Mas todos concordam que temos uma floresta mal organizada, que desperdiçamos recursos e que a floresta deveria ser uma das formas de fixar as populações rurais. É por isso que me pergunto se não sabemos aprender com os erros cometidos. Seja porque continuamos a marginalizar as populações . Seja porque continuamos a não saber ordenar a floresta.

Não conseguiremos evitar todos os fogos florestais, mas poderemos evitar que o “velho Teotónio Louvadeus” do Aquilino acenda o fósforo. E sempre que não ordenamos, sempre que não limpamos, sempre abandonamos ao destino a floresta, há nisso um pouco do gesto do "Teotónio Louvadeus" a acender o fósforo. Todos somos Teotónio Louvadeus.