Wednesday, December 31, 2008

Manifesto Anti Qualquer Coisa num dia de balanços

Há uns anos, quando o Herman ainda tinha piada, um dos seus "bonecos" popularizou a expressão "a vida é como os interruptores, umas vezes para cima, outras vezes para baixo". Nos últimos tempos, porque alguém não deve ter pago a conta da luz, querem-nos convencer da inutilidade do clique "para cima". Estamos condenados a ficar às escuras, estamos "para baixo". Eu, porque não me sinto culpado pela conta da luz, nesta fase de "balanços" apetece-me usar o José de Almada-Negreiros para me manifestar contra os "Dantas" que não são Júlios.

É que:

"Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!"


Talvez seja tempo de começar a dizer:

"Morra o Dantas, morra! Pim!"

http://www.triplov.com/almada_negreiros/Manifesto.mp3

Tuesday, December 16, 2008


A partir de ontem tenho completa a colecção do Diário de Miguel Torga nas edições da Coimbra. Faltavam-me 3 livros que já tinha procurado em diversos locais. Recebi-os ontem como prenda e já estão, junto aos outros, na estante. Um deles é uma primeira edição. Pode não ser um livro dito raro, mas para mim era porque me faltava. Ainda que ter uma primeira edição seja uma alegria suplementar à de completar a colecção. Outro, mais antigo e já amarelecido pelo tempo, chegou-me às mãos ainda com os cadernos fechados - que eu valorizo ainda mais que as primeiras edições. Completar a colecção integral das obras de Miguel Torga, nas edições do autor, aquelas de capa de cartolina branca, é um dos projectos da minha vida. Algo que quero ir fazendo ao ritmo das descobertas de livros, cada vez mais raras e caras. Sei que não vai ser fácil, mas ontem alguém me ajudou a completar uma etapa. Um acto de amor.

Tuesday, October 07, 2008

Nevosa

ao fundo a Fonte Fria
Pico da Nevosa visto do Sul

Ontem voltei a subir ao Pico da Nevosa. Foi a terceira vez que lá fui e pela primeira vez subi ao topo pelo Sul. Na primeira preferi não subir, a aventura pareceu-me demasiado arriscada. Fiquei, com a maioria do grupo que me acompanhava, a ver as subidas/escalada dos outros. No final ainda houve uma pequena troca de argumentos por aquilo que parecia ser um temeridade. Na segunda subimos pelo Norte e descobri então que havia um acesso fácil. Desta vez, ao seguir os companheiros mais destemidos, acabei por arrastar comigo um pequeno grupo. Não é muito complicada, mas numa passagem tive algum receio. Por mim e pelos companheiros que involuntariamente arrastei. É nestas alturas que percebo melhor os limites a que me impus na montanha. Ainda que perceba o prazer do "risco", ainda que goste da adrenalina que as condições de "stress" provocam, prefiro ir por onde me levam as minhas pernas. É por isso que modalidades de montanha não me atraem da mesma forma. Comecei tarde e há viagens para as quais já não posso/devo comprar o bilhete. Lá em cima o deslumbramento de sempre.

Mais tarde, num dos inúmeros prados, uma companheira de montanha, guia de serviço, desafiou-nos a uns exercícios de Yoga (não sei se com ou sem acento - já me explicaram que é muito diferente, ainda que não tenha percebido em quê - mas para o caso não é importante). Foram apenas curtos exercícios de respiração, mas souberam muito bem. A massagem também ajudou.

Os momentos mais altos foram, no entanto, o avistamento de fauna normalmente mais esquiva. Ainda que mantivessem as distâncias seguras, por momentos senti-me num episódio da BBC Vida Selvagem.

o grupo a relaxar (foto da White Angel)

Thursday, September 25, 2008

Um Parque (des)Nacional


Nos últimos tempos não tenho conseguido caminhar tanto quanto desejava. Primeiro o calor, as férias e depois foram festas e casamentos. É uma pena porque, apesar de gostar de assistir aos casamentos de amigos, tenho perdido coisas que gostava de fazer. E uma das coisas que teria gostado de fazer era ter acompanhado o blogue Carris nesta iniciativa. Leio com alguma regularidade este blogue e não conheço muitas pessoas com a dedicação do Rui Barbosa a uma causa. É por isso que entendi que devia ajudar-lo a denunciar esta situação.

Na verdade é uma situação que para mim não é nova. Ainda recentemente escrevi em outro local algo que recupero para aqui com pequenas alterações:

"O Gerês é para mim um local de fuga. Representa uma parte do paraíso perdido. É aí que melhor me sinto e desde que comecei a percorrer a serra nos rastos das mariolas descobri um mundo novo. Caminhar 8 horas pela serra para mim não é nenhum sacrifício, mas sim um enorme prazer. Como gosto de história, comecei a ler sobre o Gerês, sobre o PNPG, sobre os serviços florestais e tudo mais que encontrava. Procuro também falar com todas as pessoas que encontro. Escutar as histórias de quem viveu e vive a serra. Aprendi a respeitar as populações. Nasci urbano e cresci urbano. Tive das zonas rurais a visão do turista domingueiro. Conhecer a serra permitiu-me ver mais. Permitiu-me conhecer o problema das populações. O PNPG teve a vantagem de preservar, mas isso seria apenas o ponto de partida. Depois era necessário desenvolver e isso o PNPG não conseguiu. E não conseguiu porque está asfixiado. Eventualmente, no início pode ter sido uma opção. Há muitos gestores e técnicos do ambiente que possuem uma visão "conservacionista". Na verdade, esses gostavam de ter uma reserva e não um Parque Nacional. Entendem que o homem está a mais. Hoje julgo que será mais pela questão financeira. Acredito que muito dos técnicos dos PNPG gostavam de fazer mais. Só que o dinheiro dá para manter as portas abertas e para pouco mais. O problema será então o mais do subfinanciamento pelo ICNB e menos da gestão. Só que em resultado disso o parque torna-se autista, ainda mais "conservacionista" e "proibicionista". Educar, acompanhar e desenvolver pede meios que não possuem. É mais fácil dizer não. Quem perde? As populações. Há muita gente que não percebe a razão das casas dos guardas estarem abandonadas e os caminhos fechados e degradados, mas pode haver uma estranha lógica nisso. Nas férias, li como as populações cuidaram do estradão pela Bouça da Mó abandonado pelo PNPG. Não pude deixar de pensar se na acção (inação) do PNPG não estava uma tentativa de simplesmente fechar o estradão. Um pouco a exemplo do estradão para os Carris. Resolver o problema da circulação pela degradação do caminho. Li também recentemente a aprovação de projectos para a Serra Amarela e acho que são um sinal de esperança. Espero que seja um sinal de mudança de direcção."

Tuesday, September 09, 2008

O gato pardo

cena de "Il Gattopardo" - Luchino Visconti

Pardo é uma cor entre o branco e o preto. Uma cor nublada que não se define ou escolhe. Uma cor em perpétuo período de mudança. Uma cor adequada aos cinzentos. Uma cor para os que não escolhem para serem os escolhidos. Dizem que é uma cor para os dias de hoje. E muitos gatos já não aguardam pela noite para "empardecer". Tudo isto poderia não passar de um trocadilho fácil com o filme do Visconti, se não fosse motivado em felinos que ronronam com medo de perder os pires de leite.

Wednesday, August 27, 2008

A Casa das Neves da Serra Amarela

Depois da visita às ruínas da "Casa das Neves", que os Arcebispos de Braga fizeram construir no alto da Serra Amarela para abastecimento de gelo, procurei mais alguma informação sobre a construção. Fontes que não posso confirmar dizem-me que esta será das poucas "casas de neves" conhecidas em Portugal. Na verdade, eu já tinha lido sobre ela sem a conseguir localizar. E depois da visita voltei à fonte original. Sobre esta construção, em 1728 o padre José de Matos Ferreira, em “Thesouro de Braga descuberto no Campo do Gerez”(1), referiu-se a ela da seguinte forma:”(...) nesta está hũa com tal propriedade em sua agoa, que por ser frigidissima se não pode consentir nella hua mão por espaço hũa Ave-Maria; tem tambem esta planície a Casa das Neves, que o Ilustrissimo Senhor Arce.po Dom Luis de Sousa mandou fazer para recolhimento da neve, de que muito usava no Verão e hoje grande parte desta casa está arruynada”. Pelo que já no sec. XVIII a construção estava abandonada. Como Dom Luís de Sousa, a quem identificam como responsável pela construção, foi arcebispo de Braga de 1677 até 1690, poucos terão sido os anos de utilização. Considerando que então o melhor acesso a Braga seria, pelo menos em grande parte, pela Geira, a milha mais próxima é a XXIX (descendo por Vilarinho). E da milha à casa das neves, fosse qual fosse o trajecto, deveriam ser ainda mais uns 6 kms. Assim, o gelo faria uns 52 km até à mesa do Senhor Arcebispo (2). Distância que não parece excessiva já que a corte era abastecida desde a serra da Lousã e de Montejunto.

(1) Não posso garantir, mas julgo que este livro pode ser comprado nas Portas do Parque em Campo do Gerês.
(2) Outros trajectos alternativos não devem alterar muito esta estimativa.

Tuesday, July 22, 2008

Porto Bike Tour

No último Domingo fui um dos 8500 participantes do Porto Bike Tour. Tinha curiosidade sobre este evento e fiquei supreendido pela logística envolvida. É uma ideia feliz e parece estar a ter sucesso. Em 2009 voltarei a participar.

Tuesday, July 15, 2008

Caminhada na Serra Amarela

No último Domingo (1) voltei à Serra Amarela repetindo a caminhada que idealizámos para homenagear Miguel Torga. Em 2007 as condições climatéricas reduziram a caminhada a um pequeno grupo de corajosos caminheiros. Nessa ocasião fizemos toda a cumeada debaixo de um denso nevoeiro e só o bom conhecimento do trilho (e o seu registo no GPS) não nos fez regressar. Nasceu assim o desejo de voltar num dia melhor. Depois com o UPB não tive melhor sorte. Desta vez o dia estava claro, excelente para caminhar e aproveitar a paisagem a que Torga chamou "Portugal nuclear, a Ibéria na sua pureza essencial e granítica".


Margot Dias, Miguel Torga, André Rocha, Jorge Dias(2) e José Fecha(3) fotografados nos montes de Vilarinho

Em 25 de Julho de 1945 Miguel Torga percorreu a Serra Amarela na companhia de um habitante de Vilarinho da Furna porque queria ver um fojo de que tinha tido notícia. Procurou um guia e foi-lhe indicado José Fecha, pastor, contrabandista e profundamente conhecedor da serra. A jornada está perfeitamente descrita no Diário e na Criação do Mundo. Dois relatos perfeitos sobre o carácter do poeta e do seu amor pela serra e pelos serranos

No Domingo iniciámos a caminhada em Brufe, porque Vilarinho da Furna já não existe, e procurámos os locais visitados em 25 de Julho de 1945. Aos fojos, às casarotas, às vezeiras, juntamos as silhas, o muro de Vilarinho, a Louriça de onde decidimos descer para Vilarinho. Desta vez tivemos ainda a sorte de conseguir visitar a famosa "Casa das Neves", que os Arcebispos de Braga fizeram construir no alto Serra para abastecimento de gelo, da qual já tinha lido algumas referências mas nunca tinha encontrado elementos suficientes para a localizar. Dela não restam mais que 3 paredes enterradas numa chã, mas foi a "cereja em cima do bolo" desta caminhada. Como o poeta gosto de descobrir os "recados do passado". Descoberta que não teria sido possível sem a colaboração da CMTB e que não posso deixar de agradecer

Deixo para outra oportunidade informações sobre as Casarotas, a Casa das Neves e Vilarinho da Furna. Na preparação desta caminhada descobri ainda uma evidência de Miguel Torga ter caminhado mais do que uma vez pela Serra Amarela. As fotos que ilustram o artigo de Jorge Dias sobre as casarotas (1946), apesar da má qualidade das cópias que possuo, identificam claramente o Miguel Torga junto das construções. E como elas não terão sido realizadas em 25 de Julho de 1945, comprovam que pelo menos outra vez voltou lá. Possivelmente na mesma data em que Jorge Dias e Miguel Torga foram fotografados na companhia das esposas e José Fecha perto de Vilarinho. Da monografia de Jorge Dias tenciono ainda utilizar outras informações. As férias estão a chegar e terei algum tempo para os escrever.

(1) A caminhada foi organizada no Domingo pela AAEUM com aparticipação do UPB. No dia anterior o UPB fez praticamente a mesma caminhada em sentido inverso
(2) Jorge Dias, etnólogo português autor de "Vilarinho da Furna, uma aldeia comunitária" (tese de doutoramento de 1944) e de "As Casarotas na Serra da Amarela: construções megalíticas com uma inscrição"(1946)
(3) Habitante de Vilarinho da Furna, guia de Miguel Torga em 25 de Julho de 1945
fotos da caminhada

Monday, May 26, 2008

Aldeia Velha do Juriz - Sancti Vicencii de Gerez

vista sobre o carvalhal que esconde a aldeia

Foi numa pesquisa sobre Pitões das Júnias que soube da existência da Aldeia Velha do Juriz. A vontade de a procurar foi imediata, mas nem sempre as caminhadas por aquela zona me permitiram abandonar o percurso. Por duas vezes aventurei-me sozinho em rápidas incursões pelo carvalhal de Beredo. Por duas vezes não a encontrei, apesar das cartas militares identificarem um local como castelo. Na segunda tentativa ainda deslumbrei a cruz de pedra que os populares de Pitões me davam como referência, mas atrás chamavam-me para o trilho.

à lareira na Taverna Celta

Encontrei-a, finalmente, na tarde do último Sábado. O dia tinha amanhecido chuvoso e depois do pequeno-almoço ficámos na Taberna Celta à lareira. Lá fora, dia não estava para caminhadas e foi difícil abandonar o conforto do fogo. Em volta da lareira, tivemos ainda a sorte e oportunidade de trocar informações com um cliente habitual da taverna. Sobre o carvalhal havia um denso manto de nevoeiro que apenas a espaços abria. Pousadas numa mesa, umas cartas militares da zona permitiam-me recordar as caminhadas que já fiz por ali, mas essencialmente recordavam-me as por fazer e a aldeia por descobrir.


ruínas de uma casa de planta quadrangular

Após o almoço tardio o tempo parecia querer abrir e, após uma rápida visita ao pólo de Ecomuseu de Barroso, decidimos procurar a aldeia. O caminho começa perfeitamente marcado mas desaparece depois no meio da vegetação. Após algumas hesitações, fomos avançando e finalmente encontrámos a aldeia. Percebi então que tinha estado muito perto dela nas pesquisas anteriores. Numa delas teria estado a menos de 50 metros. Da aldeia pouco mais resta que alguns muros e vestígios de arruamentos. Só que a sua integração no carvalhal transmite uma certa magia ao local. Espero que o Ecomuseu a torne visitável e facilite a sua interpretação. É um património que merece ser valorizado e conhecido. Mesmo estando já em pleno PNPG não se compreenderá que fique escondido. Se, como diz o arqueólogo Luís Fontes, a aldeia é fundamental para conhecer a evolução do povoamento medieval do maciço geresiano devem ser criadas as condições que permitam a sua visitação.


vestígios da limpeza efectuada recentemente

Na zona mais elevada da aldeia encontrámos sinais de uma limpeza recente conforme nos tinham referido na aldeia. Como foi feita pelos bombeiros, julgo que terá sido feita como prevenção contra incêndios. No entanto pode ser também sinal que a sua visitação está mais próxima. O tempo chuvoso não nos deixou apreciar toda a beleza da aldeia, mas subimos ao alto dos blocos de granito que serão o chamado castelo. No alto encontramos a famosa cruz de pedra e umas inscrições. Não ficamos muito tempo, as nuvens sobre a capela de S. João anunciavam a chuva que rapidamente nos alcançou. Espero voltar lá com mais tempo e investigar outros caminhos.

pequena cruz de pedra no alto do castelo

entalhes na rocha da pequena atalaia (?)

Descrição arqueológica* : Povoado abandonado com arruamentos lajeados e vestígios de cerca de 40 casas, de planta geralmente quadrangular e paredes de blocos graníticos mais ou menos aparelhadas, muitas ainda com umbrais e soleiras das entradas. Poderá tratar-se da aldeia medieval de Sancti Vincencii de Gerez referida nas "Inquirições Afonsinas" de 1258, provavelmente abandonada no século XV, tempo de fomes, pestes e guerras. Nunca mais seria reocupada, podendo aceitar-se que tenha sido substituída pela aldeia de Pitões das Júnias. O lugar encontra-se actualmente coberto por um frondoso carvalhal espontâneo, com a vegetação a conferir às ruínas uma beleza pouco vulgar. No extremo setentrional do povoado, no topo de um pequeno outeiro coroado por caos de blocos graníticos, a que a população chama "castelo", identificam-se alguns rasgos que desenham uma planta quadrangular com cerca de 2 metros de lado, vestígios que poderão corresponder a uma pequena atalaia. Um pouco mais longe, cerca de 1,5 km para Sudeste, fica o mosteiro de Santa Maria das Júnias. Em termos arqueológicos conserva-se tudo em bom estado.

Interesse : Trata-se de um monumento de inegável significado histórico regional e excepcional valor científico e patrimonial, cujo estudo é fundamental para o conhecimento da evolução do povoamento medieval na vertente nascente do maciço geresiano. As ruínas desta aldeia abandonada enriquecem-se ainda com a paisagem envolvente, marcada por exuberante cobertura vegetal e relevos vigorosos. No Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Peneda-Gerês foi proposta a classificação do "Povoado de Juriz" como Monumento Nacional.

*fonte: Luis Fontes

PS: após publicação deste "post" tive a informação que o acesso mais tradicional à aldeia velha não seria pelo carvalhal. Esta nova informação confirma as minhas suspeitas, que não procurei esclarecer com receio de ser surpreendido por chuva forte. É mais uma coisa a investigar.

Wednesday, May 21, 2008


Há 36 anos, 21 de Maio de 1972, foi oficialmente inaugurada a Barragem de Vilarinho da Furna. Não sou contra o progresso, mas não consigo deixar de pensar que as águas da albufeira não submergiram apenas campos e casas. Submergiu também o "o testemunho de uma urbanidade tão dignamente conseguida" que o Torga via nas suas visitas a Vilarinho. Tenho algumas dúvidas que, caso não tivesse sido submersa pelo progresso, Vilarinho permanecesse fiel a si mesma. Essa é a maior ironia da albufeira, destruiu a aldeia mas criou o mito. Como um herói, Vilarinho da Furna descansa no panteão para a posteridade. E só um herói morto é que não nos atraiçoa.

Gerês, 6 de Agosto de 1968 — Derradeira visita à aldeia de Vilarinho da Furna, em vésperas de ser alagada, como tantas da região. Primeiro, o Estado, através dos Serviços Florestais, espoliou estes povos pastoris do espaço montanhês de que necessitavam para manter os rebanhos, de onde tiravam o melhor da alimentação — o leite, o queijo e a carne — e alicerçavam a economia — a lã, as crias e as peles; depois, o super-Estado, o capitalismo, transformou-lhes as várzeas de cultivo em albufeiras — ponto final das suas possibilidades de vida. E assim, progressivamente, foram riscados do mapa alguns dos últimos núcleos comunitários do país. Conhecê-los, era rememorar todo um caminho penoso de esforço gregário do bicho antropóide, desde que ergueu as mãos do chão e chegou a pessoa, os instintos agressivos transformados paulatinamente em boas maneiras de trato e colaboração. Talvez que o testemunho de uma urbanidade tão dignamente conseguida, com a correspondente cultura que ela implica, não interesse a uma época que prefere convívios de arregimentação embrutecida e produtiva, e dispõe de meios rápidos e eficientes para os conseguir, desde a lavagem do cérebro aos campos de concentração. Mas eu ainda sou pela ordem voluntária no ócio e no trabalho, por uma disciplina cívica consentida e prestante, a que os heréticos chamam democracia de rosto humano. De maneira que gostava de ir de vez em quando até Vilarinho presenciar a harmonia social em pleno funcionamento, sem polícias fardados ou à paisana. Dava-me contentamento ver a lei moral a pulsar quente e consciente nos corações, e a entreajuda espontânea a produzir os seus frutos. Regressava de lá com um pouco mais de esperança nos outros e em mim.

Do esfacelamento interior que vai sofrer aquela gente, desenraizada no mundo, com todas as amarras afectivas cortadas, sem mortos no cemitério para chorar e lajes afeiçoadas aos pés para caminhar, já nem falo. Quem me entenderia?
(Miguel Torga, Diário XI)

Friday, May 09, 2008

Boicote


Existem outras formas de condenar a violência no Tibete? Um boicote de cidadãos aos produtos chineses não seria mais eficaz?

Wednesday, April 02, 2008

Crónica de um reconhecimento furado

No passado Domingo, 30 de Março, reconheci , na companhia do Tiago, o percurso da caminhada a realizar no próximo dia 6 de Abril (Domingo) com a AAEUM e o UPB. Na AAEUM, Sempre que possível, gosto de manter este procedimento . Serve para verificar as condições do percurso e estudar algumas alternativas ao programado. O UPB é um espaço mais livre. O espirito é de maior aventura, de partilha de responsabilidades, caminheiros e montanhistas mais experientes. Para esta caminhada, dada a companhia de um profundo conhecedor do percurso, o Ricardo Silva, nem era muito importante fazer o seu reconhecimento, mas também queria aproveitar para o realizar em BTT.

No sentido inverso ao da caminhada, saímos de Campo do Gerês tão cedo quanto a mudança da hora nos permitiu e lançamo-nos à Geira. O tempo estava incerto e chuviscos rapidamente se transformaram em chuva, dificultando o reconhecimento. Razão pela qual não tivemos muito tempo para apreciar e fotografar as paisagens percorridas pela Geira. Eu sou um ciclista recente e os primeiros km são sempre mais complicados. Vou ganhando confiança, em mim e na máquina, aos poucos. De certa forma, parte do interesse da exploração era também testar os meus limites.

As estradas romanas possuíam uma inclinação pequena, pelo que se percorrem sem dificuldade. Só que, para as bicicletas, algumas zonas da antiga calçada são de dificuldade técnica exigente e algo duras para os pneus. Após 4 furos, uma bomba perdida e outra com problemas, tivemos mesmo que improvisar um carro vassoura que nos socorreu, perto da milha XVII, na capela de S. Sebastião da Geira. Local onde interrompemos o reconhecimento. Foi uma enorme aprendizagem. Já não me recordava de reparar um furo. Já não me recordava de desmontar um pneu. Mas parece que não é só o andar de bicicleta que não esquece.

Não chegamos até Sta Cruz (milha XII), mas fizémos o reconhecimento de grande parte do percurso. As milhas que faltaram serão as mais alteradas e seriam até as mais fáceis de percorrer. Ficou claro que a Geira é um percurso de grande beleza e com uma dificuldade acessível a todos os públicos. Uma caminhada que permite o contacto com a nossa história e com paisagens diversificadas. Voltarei à Geira em BTT. Apesar das dificuldades técnicas de algumas zonas, é fantástica. Um cenário fabuloso para andar de bicicleta.

Monday, March 17, 2008

Sobre a voluptuosidade da fadiga e outros apontamentos


Açor, Serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 – Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ao quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa sempre foi generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés foram sempre no meu espírito coisas sagradas e intimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo na paisagem integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito ou do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerês. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespepeare… Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!
Miguel Torga - Diário
II


É a segunda vez que publico esta entrada do Diário. Publico-a novamente porque ela ilustra bem também a minha relação com a "paisagem" e o que experimentei ao percorrer mais uma vez o meu chão de eleição. O prazer de sentir a voluptuosidade da fadiga e depois descansar a olhar a paisagem ao nosso redor é coisa que não consigo explicar facilmente. Apenas os outros "geófagos", para usar a expressão do Torga, o compreendem. Os curtos minutos em que fiquei a olhar as Fichinhas e o vale do Rio da Touça foram simplesmente mágicos. Entro na montanha quase como quem entre num templo. É nela onde melhor me contemplo. É por isso que não a entendo sem estes momentos de reflexão. Depois foi descer e percorrer o mais bonito vale do PNPG. Um percurso tão bonito como duro e perigoso. Para mim a mais bonita ruga de Portugal.

Tuesday, March 11, 2008

Into the wild

auto retrato de Christopher McCandless no "Magic Bus"

Foi um companheiro de caminhadas que falou do filme. Fiquei curioso e procureio-o. É um filme belo sobre um idealismo extremo. Um filme que nos questiona de diversas formas. Realizado por Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer, conta a história verídica de Christopher McCandless. Vale a pena ver e ouvir.

Friday, March 07, 2008

Ariane



Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

MIGUEL TORGA
Prisão do Aljube - Lisboa, 1 Jan 1940

Tuesday, February 26, 2008

Finalmente o Castelo de Bouro

acesso ao castelo perfeitamente delimitado pela queimada

vestígios de fundação ?

pedras soltas, vestígios de muro?

No último Domingo penso ter finalmente encontrado alguns vestígios do Castelo de Bouro. Já não tinha dúvidas sobre a sua localização, como já tinha escrito num outro post. Faltava-me era encontrar as evidências no local. Claro que nas minhas certezas há um certo grau de fé. Não sou arqueólogo e na minha convicção de as ter encontrado há muita vontade de acreditar.

Aos meus companheiros de caminhada, desconfiados das explicações sobre o castelo, recordei ter estado sentado naquelas fragas a roer uma maçã com as mesmas dúvidas. Não é fácil situar ali um castelo. E foram essas dúvidas que mais tarde me fizeram situar o castelo no Piorneiro, convencido que o Castro e Castelo seriam a mesma coisa. A imagem que temos de um castelo não se adequa ao local. Primeiro temos que desconstruir essa imagem e depois imaginar o castelo roqueiro que teria existido ali.

Mas quais foram as evidências que encontrei? As fundações do que me parece ser um pequeno muro, ou de uma construção, e umas pedras soltas (restos de um pequeno muro?). Como posso afirmar que são vestígios do castelo? Não posso, mas posso e quero acreditar. Sei no entanto que foram encontrados no local vestígios suficientes para localizar ali o castelo, confirmando as fontes bibliográficas. Procurei também uns entalhes na rocha que me disseram existir, mas não os encontrei. Em Aboim da Nobrega é muito mais fácil situar o castelo. Lá as fundações são perfeitamente visíveis nos entalhes na rocha. É uma pena que o local não tenha qualquer informação. Como a maioria das pessoas que fazem o trilho nunca conseguem identificar o local, acabam com uma sensação que perderam alguma coisa. Seria um bom complemento para mais bonito PR marcado pela CM Terras de Bouro.

Propositadamente deixei o castro do Piorneiro para futuras explorações. Quero lá ir com mais calma. Tenho do local maiores evidências. Nomeadamente a gravura e descrição existente nas Memórias Paroquiais de 1758. Tenho na ideia repetir a exploração que o abade José Coelho da Silva descreve em 1758, embora não me apeteça carregar com a escada manual pela qual "se pode e com muito trabalho subir". Quero pelo menos identificar a "Lage Pinta do Castro".

Alguns extratos do que li sobre o Castelo:

"Tem esta serra muintos penedos e grandes o quoal chamam o Castello e assim se chama a dita serra e no dito penhasco no cimo delle faz um caminho à via aprazivel das partes penedos altos quazi semelhante a outro penhasco que chamam do Castro do lemites da freguezia de Santiago de Chamoim e só difere em nam ter tantos penedos e também nam ter cobertura por cima. Em hum e outro se acham muitos tejolos artificialmente feitos por naçoens barbaras antiguamente e duros como pedras."

«Memórias Paraquiais de 1758 - Covide» in Memórias e Imagens de Terras de Bouro Antigo Edição CM Terras de , 2001



"Basta a análise das freguesias de Covide e da Cravalheira para logo concluir que o Castelo deveria situar-se próximo das duas povoações desses nomes. Mas, entre ambas, de qual estaria êle mais perto? Nenhuma dúvida temos que de Covide, e pelos seguintes motivos:
1º É na acta de Covide que se faz referência ao serviço de vela, por parte de determinadas famílias da freguesia.

2º É, também, junto a Covide, que passa a Estrada da Geira, correndo em estreita cumeada entre profundos vales de freita, a leste e da Carvalheira, a oeste.

3º E, por último, é ainda cerca de Covide que o terreno, subindo rapidamente para o cabeço do Piorneiro (cota 992), oferece em seus esporões avançados o melhor sítio para defesa da Estrada da Geira (...).

Costa Veiga - «O Julgado de Bouro, a Fronteira da Portela do Homem e o Castelo de Bouro em documentos mediavais» in Terras de Bouro. O Homem e a Serra, Câmara Municipal de Terras deBouro, nº2, 1992

Thursday, February 07, 2008

O circo e as dúvidas

foto tirada nas Minas dos Carris com o Pico da Nevosa ao fundo

Esta semana todos os que gostam da montanha foram surpreendidos com a notícia dos 3 montanheiros perdidos na Serra do Gerês. Os jornais, as tv´s e os outros órgãos de comunicação de divulgação nacional deram a esta notícia um largo destaque. Destaque que possivelmente ultrapassou em muito o interesse local da notícia. Portugal é assim, o cheiro a drama dá às mais simples coisas uma notoriedade descabida. E o pior é que esta atenção não resulta em maior qualidade da informação, apenas amplia ao absurdo as poucas informações iniciais. É o circo mediático. O pior espectáculo do mundo.

Desde a primeira hora que fiquei com sérias dúvidas sobre o que ouvia. As referências geográficas não faziam qualquer sentido. Percebi nas informações cruzadas qual a actividade que o grupo estaria a fazer, mas apenas porque sei quais os percursos normalmente realizados na zona. Nada nas primeiras notícias permitia tirar essa conclusão. Só quando a rede informal começou a funcionar a qualidade da minha informação melhorou. Começaram-me foi a surgir outras dúvidas.

Não quero abordar se os 3 montanheiros tinham experiência, ainda que saiba que os 3 são experientes e com formação em montanha. Tão pouco me interessa a questão se poderiam estar ali, pois estas questões, ainda que pertinentes, induzem ruído sobre aquilo que ninguém do circo percebeu ou questionou.

A questão é que os 3 montanheiros informaram às 16h00 a sua localização em coordenadas GPS, o que os geo-referenciava com um pequeno erro. Na montanha os 3 até poderiam não conseguir localizar as coordenadas numa carta ou mapa, mas a equipa de resgate desde essa hora teria uma localização muito aproximada do grupo (Pico da Nevosa 1500 metros). E se alguma dúvida existisse os 3 estiveram sempre contactáveis por telemóvel. Tanto que pelos vistos um jornalista conseguiu ligar com o grupo perto das 23h00. Ou seja, a equipa de resgate sempre soube que o grupo estaria a menos de uma hora das minas dos Carris (1450 metros). Local servido por um estradão de apenas 9 kms até à estrada Gerês-Portela do Homem. Logo seria sempre o melhor local para centrar o socorro. A razão porque optaram por centrar o socorro nas Lagoas do Marinho (1150 metros), a umas 3 horas do local é demasiado estranha. Até porque até ao local teriam que subir os 350 metros de diferença de cota por terrenos certamente alagados. A verdade é que no Gerês conhecendo-se a localização desde as 16h00 de um grupo, por muito mau que esteja o tempo, não se compreende a razão de os obrigar a uma pernoita naquelas condições. E muito menos se percebe as razões de terem mobilizado um helicóptero, um meio caro e completamente inadequado para o as condições meteorológicas.

Tenho para mim que o que este caso evidenciou foi uma total impreparação para estes socorros. Coisa que não estranha, porque na emergência tudo deve estar planeado e testado em simulacros. Desconheço se o PNPG possui planos de emergência e teria gostado que algum jornalista se questionasse sobre isso. Propositadamente não faço aqui qualquer interpretação dos factos. Prefiro registar a(s) dúvida(s). Mas a rede informal continua a funcionar e a permitir-me tirar conclusões.

Interessante foi também ler alguns comentários às notícias electrónicas. O Portugal sentado reagiu com um furor despropositado. Exigia-se facturas, punições. Os 3 ao Pelourinho, já - pediam contra os jovens "imbecis" que se perderam. E claro que aqui o facto de um ser um "jovem" de 40 anos era irrelevante. É jovem porque faz coisas que o Portugal sentado não faz. O que diriam essas pessoas ao verem famílias inteiras a caminhar pelos Parques Naturais fora das nossas fronteiras? Como chamariam ao sexagenário que vi descer do Monte Perdido? Estrangeiros, coisas para estrangeiros - escreveria o Portugal sentado. Claro que quando quiser chamar uns turístas o Portugal à mesa do orçamento dirá que temos condições únicas para pedestrianismo. Um clima, umas paisagens magníficas - diz um Portugal que acha que isso são coisas paros outros - Uns malucos, doidos perigosos a quem não temos que pagar as asneiras.

Sobre este caso li as maiores "asneiras". Muitas delas ditas por responsáveis que deviam saber calar. Percebi, mais uma vez, na leitura cruzada das diferentes notícias a falta de rigor da informação publicada. Os jornalistas preferem citar-se uns aos outros a questionar os factos. Recordo uma expressão lida algures sobre a guerra: "na guerra a primeira vitima é sempre a verdade". Chego vezes demais à conclusão que nesta verdadeira guerra de audiências, tiragens e resultados financeiros, no campo da informação jaz uma vitima desconhecida. Aparentemente este foi mais um dos casos. Feliz ficou o Primeiro Ministro porque os telejornais mostraram os novos helicópteros. Podem ter chegado tarde para os incêndios, mas chegaram a tempo de se mostrarem num salvamento onde não faziam falta.


mapa com os pontos citados

Tuesday, January 22, 2008

O fósforo do Teotónio Louvadeus

“Não interessa! A Aldeia tal como se acha hoje com um atraso de muito séculos sobre o mundo civilizado, queda indiferente à aventura. Para o serrano, com a sua casa de colmo ou telha-vã, tamancos de amieiro couraçados de seteiras de ferro, metido dentro da cachupa de burel, que, espécie de saco descosido, deve ser o feio e prático manto do turdetano, isto é, do aborígene, assoando-se para o chão com o premir uma venta e depois outra, e limpando-se ao canhão da vestia, dormindo na promiscuidade de cama de barqueiro, com o pesado carro céltico de rodas fixas, panelas de barro em vez de potes de ferro, creosene em vez de luz eléctrica, o que condiz é a serra como está, Doutro modo, para ele é um contra-senso... Na minha opinião humilde e desambiciosa, opinião de quem vê o homem através da sua humanidade, o que há a fazer é plantar a civilização nas aldeias, uma civilização digna do século XX, antes de pensar ir para a serra mudar-lhe a natureza.”
...
“...è pena que Vossas Excelências queira entrever o problema somente pelo lado do aproveitamento. Ainda por este lado há muito que se lhe diga. Mas pois que o lado moral, diremos psicológico, não lhes interessa, essa ignorância é muito susceptível de lhes causar grandes amargos de boca.”
...
“Ora essa! – respondeu o Dr. Rigoberto. – A minha opinião e, salvo seja, a do meu constituinte é que a serra renderia, no futuro, economicamente dez, vinte vezes mais do que está, abandonada à lei das estações, rapada hoje pelas sacholas dos roçadores, espontada de vegetação nova, na Primavera, pelos gados. Mas havia de ser o povo, guiado pelos Serviços Florestais, assistindo em tudo do Estado, que deveria proceder arborização, sem o obrigarem a perder o sentimento de liberdade que ali se desfruta. Condicionassem o aproveitamento das madeiras e mais indústria silvícola, deixassem-no ficar, ao menos nominalmente, o dono dela. Ou, então elevassem os povos a um grau tal de desenvolvimento que essa circunstância se tornasse menos um conquista sobre a pobreza dos serranos do que uma necessidade ou encontro com uma vida melhorada e progressiva. No estado em que a população se acha, rude, penurienta, de nível de vida baixíssimo, a serra é-lhe absolutamente indispensável porque só assim corresponde ao seu atraso.”
Quando os lobos uivam - Aquilino Ribeiro


planta do projecto de florestação da Serra da Cabreira


Eu nunca tinha caminhado na Serra da Cabreira mais do que pequenos percursos. Apesar de a ter tão perto, é uma serra que não ainda conheço. No Sábado passado a caminhada com o UPB deu-me a oportunidade para lá caminhar. Tinha uma ideia do percurso e, como não gosto muito de caminhar por estradões, as minhas expectativas não eram muito elevadas. Confesso que me surpreendi e fiquei com vontade de lá voltar. A vista desde o Talefe é surpreendente. Umas das melhores sobre o PNPG.

Na caminhada duas coisa despertaram a minha curiosidade: umas ruínas de uma casa dos Serviços Florestais perto do Talefe e uma conversa no café da aldeia à hora da “sopa”. Numas chãs praticamente despidas de árvores, a casa chamara-me a atenção pela contradição. No café, na tal conversa com algumas pessoas da aldeia, confirmei as minhas suspeitas. Dois grandes incêndios, nas décadas de 70 e 80, teriam deixado aquelas chãs praticamente sem vegetação.

Recordei-me então do que li sobre a Serra d’Arga. Recordei-me do “Quando os lobos uivam” do Aquilino Ribeiro, a quem fui buscar as citações. Recordei-me das histórias da revolta dos povos do Gerês contra os Serviços Florestais nos finais do século XIX. Recordei-me do amigo que um dia me surpreendeu ao dizer-me que, para ele, a história da florestação tinha sido um erro enorme, um erro muitas das vezes vingado pelo fogo.

A casa e a conversa levaram-me a reflectir sobre a floresta e como ela foi plantada. É verdade que após um longo processo histórico desflorestação Portugal precisou de inverter a situação. Não apenas por uma boa gestão dos recursos florestais, mas fundamentalmente para evitar os fenómenos erosivos. Nos finais do século XIX Portugal teria um coberto vegetal inferior a 25% do actual. Foi essa a preocupação que presidiu à criação dos Serviços Florestais em 1886, com o início dos trabalhos de arborização nas serras do Gerês e da Estrela em 1888. Só que o processo de arborização nem sempre foi o mais feliz. E foi muitas das vezes feito contra as populações. Não falta quem afirme que a florestação foi um processo mal concretizado, mal amado e que apenas nos deixou os montes cheios de pinheiros. Contribuindo dessa forma para o abandono dos espaços rurais. Outros salientam a dimensão da obra realizada e atribuem a maior responsabilidade da expansão do pinheiro aos pequenos proprietários. O maior equilíbrio da opinião dos segundos fará mais sentido. Mas todos concordam que temos uma floresta mal organizada, que desperdiçamos recursos e que a floresta deveria ser uma das formas de fixar as populações rurais. É por isso que me pergunto se não sabemos aprender com os erros cometidos. Seja porque continuamos a marginalizar as populações . Seja porque continuamos a não saber ordenar a floresta.

Não conseguiremos evitar todos os fogos florestais, mas poderemos evitar que o “velho Teotónio Louvadeus” do Aquilino acenda o fósforo. E sempre que não ordenamos, sempre que não limpamos, sempre abandonamos ao destino a floresta, há nisso um pouco do gesto do "Teotónio Louvadeus" a acender o fósforo. Todos somos Teotónio Louvadeus.