Friday, January 16, 2015

Acerca do topónimo Cruz do Touro


vista para a Cruz do Touro

Uma publicação do Rui Barbosa no seu blogue Carris abordou as diferentes designações com que um mesmo local aparece em duas edições das cartas militares (Carta Militar de Portugal 1:25 000. Continente, série M888; fl. 30). De acordo com Rui Barbosa, primeira edição da carta, de 1949, designaria o local por Cruz do Louro (coordenadas 41º49'04''N; 08º09'57''O) e a 2ª edição, de 1996, designa-o por Cruz de Touro.

Sou um leitor atento do Rui Barbosa. Partilho com ele o interesse pelas serras do PNPG, que lamento frequentar de forma menos assídua, e gosto do que faz pela preservação das memórias destas serras. À área do PNPG falta um trabalho de arqueologia da paisagem como o que o arqueólogo Luís Fontes fez para a freguesia do Lindoso (Arqueologia, povoamento e construção de paisagens serranas. O termo de Lindoso, na Serra Amarela) e na falta desse trabalho científico é o trabalho de pessoas como o Rui Barbosa, e outros, que pode assegurar que a memória construída ao longo de muitas gerações não desapareça. 

Quanto às duas designações, dentro da comunidade de “geresistas”, estes topónimos alternativos são relativamente conhecidos e usados. Como uma das alternativas do topónimo ressoa o meu apelido paterno não foi coincidência que tenha escolhido este local para em Janeiro de 2011 para “lamber as feridas”.

Sobre esta questão, o Rui Barbosa concluiu, e bem, que o topónimo correcto será Cruz do Touro e para isso baseia-se na delimitação do Gerês Florestal de 1904 que refere o "marco triangulado da Cruz do Touro".

Como o Rui Barbosa, com alguma pena de perder o ressoar do meu apelido, julgo que o topónimo correcto é Cruz do Touro. Uma conclusão a que cheguei percorrendo um caminho diferente e, de certa forma, partindo de um “local” diferente". Um caminho que publico em complemento da conclusão publicada no blogue Carris e com o atrevimento de propor uma possível explicação para a sua origem.

Um ponto de partida diferente

A diferença no ponto de partida é numa leitura mais atenta percebi que a dúvida quanto ao topónimo não se deveria colocar entre a Cruz do Louro e Cruz do Touro, mas sim entre Cruz do Iouro e Cruz do Touro. Devo confessar que inicialmente também fiz a mesma leitura de Rui Barbosa. Um erro de simpatia fácil de compreender pois já conhecia a designação de Cruz do Louro antes da consulta da carta e só depois de consultar o Reportório Toponímico de Portugal (Carta 1/25.000) percebi o erro da minha leitura inicial.

Na carta de 1949, fazendo a comparação entre as grafias de Cruz de Iouro e Louro, uma vertente do Vale do Cabril adjacente ao local, é fácil de compreender a diferença. Algo que o Rui Barbosa terá em parte percebido:
“...o facto de na Carta 30 de 1949 surgir 'Cruz do louro' poderá dever-se simplesmente ao facto da parte superior do 'T' ter sido sobreposta pela delimitação da fronteira na carta topográfica; curiosamente, na Carta 30 de 1949 o texto surge ligeiramente deslocado para a esquerda para evitar o mesmo problema.”
Não, a diferença não se deve a qualquer sobreposição. A consulta do reportório toponímico permite confirmar que o topónimo escrito na carta de 1949 é mesmo Cruz do Iouro:
Cruz do Iouro REG 197 538 03 C6 30

Legenda

Cruz do Iouro - Designação
REG – Região
197; 583 – Coordenadas anteriores a 1965
03 – Continente
C6 – Carta, escala 1/25.000
30 – Nº da folha do documento cartográfico , dentro da respectiva série

Registe-se que, ao contrário do referido na delimitação do Gerês Florestal, o local no reportório é referido como sendo uma região e não como vértice ( VGF - para vértice geodésico fundamental ou de 1ª ordem; VG - para vértices de outras ordens ou auxiliares.

Um caminho diferente

Para estudar o topónimo optei por seguir a delimitação da fronteira luso-espanhola que sendo anterior à da do Gerês Florestal poderia trazer esclarecimentos adicionais.

A delimitação junto a Lindoso originou um conflito diplomático e há muita informação que pode ser consultada na tese de doutoramento de Luís Fontes: Arqueologia, povoamento e construção de paisagens serranas. O termo de Lindoso, na Serra Amarela.

Não sendo importante para o caso em apreço, esta pesquisa ajudou-me  a perceber "a questão do Monte da Madalena" e que, apesar de ser das mais antigas e pacíficas da Europa, a delimitação exacta da fronteira luso-espanhola é relativamente recente (na realidade, devido à questão de Olivença, ela não está totalmente estabelecida). No futuro voltarei à questão dos conflitos fronteiriços no Lindoso e o realinhamento da fronteira.

As fontes


sobreposição do Mapa da fronteira de Lindoso, 1851 [1803] na moderna carta 30
(com ampliação da Cruz do Touro)

No Tratado de Limites entre Portugal e Espanha, assinado em 29 de Setembro de 1864 existem duas referências ao topónimo Cruz dos Touros:
“ARTIGO 4.º

A linha divisoria partindo do ponto designado no rio de Castro, continuará pela veia fluida d’este rio, e depois pelo rio Tibó ou Varzea, até á sua juncção com o Lima, pela corrente do qual subirá até um ponto equidistante entre a confluencia do rio Cabril e a Pedra de Bousellos. Do referido ponto subirá ao elevado rochedo da serra do Gerez chamado Cruz dos Touros. O terreno questionado entre os portuguezes de Lindoso, e os hespanhoes da freguezia de Manim, será dividido pela linha de fronteira em duas partes iguaes.”


“ARTIGO 5.º
Da Cruz dos Touros o limite internacional, voltando a sua direcção geral para nordeste, correrá pelos cumes das serras do Gerez e do Pisco, passando successivamente pela Portella do Homem, Alto da Amoreira, Pico da Nevosa, Portella da Cerdeirinha, Alto da Ourella do Carvalhinho, Côto de Fonte Fria, Pedra do Pisco, na Portella de Pitões, e Marco do Pisco. O terreno situado entre os dois ultimos pontos, pretendido por Guntomil e Pitões, será dividido pela raia em duas partes iguaes.”

Relativamente a delimitação da fronteira no local, Luís Fontes transcreve demarcação fronteiriça efectuada em 1538, num documento intitulado como “Demarcação fronteiriça de Lindoso, mandada fazer pelo rei João III (transcrição de certidão de 1856)” de que transcrevo:

“(...) no lugar onde começão partir com Galiza na cumeada da Serra das Eiras, chama-se aí a Cruz do Touro que é o lugar, onde chegou o limite de Vilarinho, e daí para diante vem o Termo de Lindoso partindo com Galiza e da Cruz do Touro vem a demarcação pela cumieira da Serra águas vertentes para Portugal e Galiza até a lagea do Cordainhos: E daí à Lobagueira da Mó, e dí à Portela da Velha, que é aí, (...) e do dito lugar descem pela Serra e Outeiro abaixo sempre águas vertentes até dar à Pedra de Bozelo, que é uma pedra tão alta como uma árvore - E daí passa a demarcação o rio, que vem de Galiza que se chama Lima, e corta direito além da dita Ribeira, e vai ao Castanheiro do Crasto, que é um lugar divisado, que tem o dito nome, porém aí não está nenhum castanheiro - Até aqui estão pacíficos, e que daqui para diante antigamente o seu Termo ia ter ao castanheiro do Crasto ó Esporão de Portela Serra acima. - E daí à Cruz da Travação, que é um lugar que tem o dito nome, e vão para junto dela dois caminhos - e daí vai ter à Portela do Couto, e daí vai ter aos portos da varzea (...) correndo por a Serra abaixo até dar na Ribeira dos Braços do Rio Tibo, que vem de Portugal já juntos, e parte daí para diante pelo dito rio sobredito acima, e concelho de Soajo, que é jurisdição sobre si com Galiza; (…)” 

Ainda com referência ao local, Luís Fontes transcreve um outro documento intitulado como 1574 - Tombo de bens móveis e de raiz da igreja de S. Mamede de Lindoso (extracto da transcrição de uma cópia certificada de 1863):

“...
Llymyte.
começa a comfromtação da dita igreja hao ryo da varzea dos pomtois dollellas hao esperão de portella e dahy ao castinheyro do gato e pasa ho ryo da pedra a portella dabelha has pedras que ahy estam dos assemtos e dahy ha llobagueira da moo e da lobbagueira da moo ao chão da portella a dahy a espiguado allto digo a espiguado coto e da espygado coto aguas vertemtes ao chão dos candyrynhos e dahy a llage das bestas e da llage das bestas a cruz dos touros sempre aguas vertemtes asy como estão os llymytes dos reynos de purtugall com galliza e da cruz dos touros vai partimdo com ho concelho de sequeyroos agoas vertemtes ao boqueiro do nazynho e do boqueiro do nazynho ao boqueiro do furto e dahy ha portella das ruyvas e da portella das ruyvas a portella do ramysquedo e dahy a portella do chão da fomte e dally ao coto do muro e do coto do muro agoas vertemtes e ally começa a partyr com ho couto davoym e do coto do muro apenas agoas vertemtes digo e do coto do muro a penas agudas e dahy a pedra pymta de penas agudas e dahy ao curral de costa bõa e dally ao marco de jovyde e do marco de jovyde a cumyeyra do olhadouro e dahy a portella da fraga da cabeça de moreas dabelheyra e dahy a portella do chão da fraga e da portella dochão da fraga pella veyga do mosteyroo ao sobreyro darmada ho quoall sobreyro jaa hy não estaa e tynha hûa pedra ao pee que dahy esta oje em dia que chamaão a amteyra da quoall pedra da amteyra vay daar hao coução de pedra furada que esta ha beira da estrada da parte debayxo e da dita pedra do coução de pedra furada vay pollo llombo abayxo dar a eyra de sequeyroo ha omde dizem que esta hua pedra pymta e da dita eyra de sequeyroo vay dar ao ryo da llymya agoas vertemtes para byrtello e llymdoso para hua parte e a outra e para o ryo por ser costa abayxo e do dito ryo da llymya vay por o meyo delle acyma ate omde emtra o ryo que vem da varzea e pello dito rio da varzea açima ate os pomtois dollellas
Este llemyte diseram elles homes bõos tomados por elles comysayros que era o lemmyte da dita freguezia e igreja e comcelho de llymdoso e destes llimmytes a demtro se pagou sempre os dizimos e direitos a dita igreja sem se no dito llemyte meter outra nenhûa demarcuação de igreja nem mosteiro gaspar çerqueira taballião escrevi”

A tese de doutoramento de Luís Fontes possui ainda um conjunto de documentos cartográficos antigos onde é possível encontrar o topónimo Cruz do Touro: Mapa da fronteira de Lindoso, 1803; Mappa do Distrito entre os Rios Douro e Minho, 1813; Mapa da fronteira de Lindoso, 1851 [1803].

A mesma conclusão

Assim, pela delimitação da fronteira luso-espanhola, é possível concluir com segurança que o topónimo do local será Cruz do Touro e que numa versão mais antiga terá assumido a forma de Cruz dos Touros. É ainda possível concluir que esse topónimo já é usado pelo menos desde o Sec. XVI.

Uma proposta de explicação

Fazer uma proposta de explicação é sempre um atrevimento e neste caso será um puro acto de especulação.

Manuel Azevedo Antunes, em "Vilarinho da Furna - Memórias do passado e do futuro", refere que os limites físicos dos terrenos de Vilarinho seriam feitos através de "marcas feitas de cruzes em grandes penedos" e a foto que o Rui Barbosa  publica mostra a existência de uma cruz gravada na rocha no local  "que é o lugar, onde chegou o limite de Vilarinho". Ainda que não possa assegurar a origem ou datação, devemos considerar que é plausível concluir que a cruz da foto é uma das referidas por Manuel Azevedo Antunes. Nas serras portuguesas não faltam locais assinalados cruzes similares marcando antigos territórios. Sejam eles de antigos concelhos, delimitação de zonas de pasto, etc. Ainda neste Verão o Rui França me mostrou algumas na Serra da Cabreira. Limites que só se podem compreender quando pensamos num território que nem sempre se organizou como hoje o conhecemos. 

Por sua vez, Jorge Dias, em "Vilarinho da Furna - Uma aldeia comunitária", explica que na vezeira os bois e vacas formavam dois rebanhos  e que as zonas de pastagem eram separadas. Este costume era explicado por apesar de castrados os bois continuarem a ter cio pelo que não deixavam as vacas pastar em paz. Entre os currais dos bois, Jorge Dias refere um designado por "Chão dos Toiros" que situa na fronteira. 

Assim a origem da Cruz do Touro seria a cruz talhada na rocha que estabeleceu em tempos os limites de Vilarinho da Furna e que ficaria próxima de um local utilizado pela vezeira dos bois. Um local para o qual Jorge Dias (na década de 1940) recolheu o topónimo de Chão dos Toiros.

Fontes:
[1] Reportório Toponímico de Portugal (Carta 1/25.000)
[2] Luís Fontes; Arqueologia, povoamento e construção de paisagens serranas. O termo de Lindoso, na Serra Amarela.
[3] Maria Helena Dias; Finis Portugalliae – Nos Confins de Portugal
[4] Manuel Azevedo Antunes; Vilarinho da Furna - Memórias do passado e futuro
[5] Jorge Dias; Vilarinho da Furrna - Uma aldeia comunitária




Adenda:
1) numa caminhada posterior percorri a linha de fronteira e verifiquei que existem muitas gravações semelhantes à talhada na base do marco fronteiriço de Cruz de Touro. Considerando que definição da linha de fronteira foi estabelecida pelo Tratado de Limites entre Portugal e Espanha, assinado em 29 de Setembro de 1864, estas gravações só podem ser posteriores ao tratado. Assim, acreditando que a explicação do topónimo a terá origem numa marca de termo, haverá algures outra cruz gravada.
2) No trilho interpretativo da Serra Amarela encontrei uma referência ao que julgo ser uma cruz semelhante à da hipótese que formulei: "...na margem esquerda do Rio da Cruz, à cota de 855 metros, existe uma gravura num afloramento. Trata-se de um cruciforme, cujos contornos se assemelham a uma cruz latina, que é o único motivo gravado. De datação desconhecida, poderá servir um propósito funcional, de divisão do espaço, talvez administrativo ou de pastoreio." Comprovando-se a hipótese, os topónimos Cruz do Touro e Ribeiro da Cruz teriam uma construção semelhante.