Saturday, December 25, 2010

Um vazio à mesa



Em recordação do meu pai no primeiro Natal em que não esteve connosco.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito.

Ladainha dos póstumos Natais, David Mourão-Ferreira, in "Cancioneiro de Natal"

Friday, December 10, 2010

Ecce Homo














Humanidade exposta
À varanda do mundo,
A mostrar,
Consumadas,
As horas cruciantes da paixão.
As chagas a sangrar
E as mãos atadas…
Violência e prisão.

Semi-velado, o rosto
Não tem olhos,
Ou cobre-os o pudor
Da lucidez…
Alheio ao sol fortuito do poder
E à vencida aparência que lhe dê,
O penitente deixa-se apenas ver.
O que ele vê, não se vê…

Miguel Torga

Tuesday, November 30, 2010

Uma leitura: Rio Homem, André Gago


Em jeito de sugestão de Natal, esta é a minha leitura actual. Para os amantes do PNPG que gostem de literatura é uma forma de juntar dois prazeres. O livro está muito bem contextualizado e dá para enriquecer os conhecimentos sobre os lugares (Vilarinho da Furna, Carris, Casarotas, etc) e sobre os acontecimentos históricos (guerra civil espanhola, II guerra, o fim da aldeia de Vilarinho, etc).

É o primeiro romance do actor André Gago e foi recentemente publicado. «É um livro que cruza a história de um foragido da Guerra Civil de Espanha com o drama vivido pela população de Vilarinho das Furnas aquando da construção da barragem (como sabem, a aldeia ficou submersa na albufeira e todos os seus habitantes tiveram de ser deslocados) e por onde perpassam, embora sem serem nomeadas, figuras portuguesas como Torga, Jorge Dias e outras», explica a editora Maria do Rosário Pedreira. «É uma obra de grande qualidade, finalista do Prémio Leya no ano passado.»

Sobre o livro:

«Em plena Guerra Civil de Espanha, Rogelio – um jovem galego de ideais republicanos – e alguns dos seus companheiros de guerrilha entram em Portugal clandestinamente com o propósito de apanhar, na cidade do Porto, um navio que os leve aos Estados Unidos e os liberte para sempre da ameaça do fuzilamento e da prisão.

Porém, no momento em que Rogelio se afasta do grupo para testar a segurança da próxima etapa da viagem, desconhece que virou do avesso o próprio destino: doravante completamente só num país que desconhece, o jovem sofrerá uma experiência próxima da morte que, paradoxalmente, o fará renascer como homem no seio de uma comunidade algo visionária, visitada e admirada por grandes intelectuais – a aldeia de Vilarinho da Furna. Aí encontrará o amor, de muitas maneiras.

Exaustivamente investigado, narrado com mestria e beleza e com uma galeria de personagens admiráveis (entre as quais não podemos deixar de reconhecer, por exemplo, Miguel Torga), Rio Homem cruza duas histórias magistrais – a de um refugiado que perdeu todas as suas referências e a da aldeia comunitária que o acolheu e que hoje jaz submersa na albufeira de uma barragem.»

fonte: aqui

nota: entretanto descobri que o livro está envolvido numa polémica acusação de plágio por Francisco José Mangas (ver aqui). Vou ter que procurar o outro livro para formar uma opinião.

Wednesday, November 24, 2010

A sentença do Monte de Vilarinho


fotos do desmontar da aldeia - Manuel Antunes

Há uns anos fiz uma caminhada nas encostas de Vilarinho da Furna com um natural da aldeia e tive a oportunidade de escutar algumas histórias interessantes. Regressado a Braga não tardei muito em procurar o livro do Jorge Dias para saber mais sobre uma aldeia da qual conhecia pouco mais do mito e umas pedras. 

Entre as diversas histórias que escutei então é, em parte, o objecto desta entrada e diz respeito à questão da aldeia com o Estado Português a propósito do Monte de Vilarinho da Furna. Foi junto ao muro, numa portela que se abre para o Vale do Cabril, que a escutei. No mesmo local onde população terá feito frente aos serviços florestais e à GNR em defesa dos seus pastos.

Quem caminha pela zona não pode deixar de ficar intrigado quando descobre o que deveria ter sido um estradão florestal. Eu na preparação dessa caminhada não tinha suspeitado da sua existência e já me preparava para uma subida dura até ao topo da Louriça.  Esse estradão, que terminou subitamente quando encontrou o muro da aldeia mas continuaria a rasgar os montes até à fronteira, a aldeia ainda deteve. A barragem, que lhe submergiu os campos agrícolas e impossibilitou a existência, já não conseguiria vencer. Por ironia, a barragem começou a ser construída no mesmo ano em que no Tribunal de Vila Verde venceram os Serviços Florestais. Sobre o muro, Jorge Dias, na sua monografia,  esclarece que terá sido pensado por um dos Zeladores de Vilarinho e realizado por toda a aldeia para delimitar os seus terrenos.

Durante algum tempo procurei informação sobre esta questão sem grande sucesso. Recentemente, do Professor Manuel Antunes (AFURNA), recebi o texto de uma questão anterior e que gostava de partilhar.

A primeira sentença diz respeito à posse dos montes de Vilarinho e sobre o estradão fica a indicação do processo. Fica ainda indicado um outro processo onde o Estado Português, já em 1995, por acordo entre as partes, reconheceu novamente a posse aos herdeiros de Vilarinho da Furna.

Sentença em que o Estado Português é condenado a reconhecer a propriedade privada do Monte de Vilarinho da Furna

Em finais de 1945, os Serviços Florestais começaram a fazer plantações no terreno de Vilarinho, aforado pela escritura de 1895, no local chamado Cova de Mámuas. Imediatamente, por intermédio do Advogado Dr. José Catalão, foi requerido embargo desse procedimento e, em 3 de Janeiro de 1946, foi interposta uma acção cível contra o Estado Português. A sentença, bem paradigmática, que aqui se reproduz, tem a data de 15 de Outubro de 1962. Vieram as A. A. Delfina Gonçalves Neves, Maria Angelina Rodrigues e Maria Fernandes Lojas, todas viúvas, proprietárias, do lugar de Vilarinho da Furna, do concelho de Terras de Bouro, desta comarca, hoje representadas pelos seus herdeiros devidamente habilitados pela decisão proferida nos autos apensos de habilitação, Maria Gonçalves Neves, António José Gonçalves Neves, Ana Rosa Gonçalves Neves, Tereza Gonçalves Neves, Angelina De Jesus Gonçalves Neves, João Gonçalves Neves, Manuel António Dias, Ana Rosa Dias, Maria Joaquina Dias, Ana Rosa de Azevedo Barroso, Maria Joaquina de Azevedo Barroso, António de Azevedo Barroso, José Maria de Azevedo Barroso, Claudino Azevedo Barroso e Manuel de Azevedo Barroso, propor a presente acção com processo sumário contra o Estado, representado pelo Mº Pº, alegando, em resumo, que por escritura de 17 de Agosto de 1895, junta a fls. 7, adquiriram o domínio útil de uma área inculta, que até à referida data, fora baldio municipal, situada nos limites do lugar de Vilarinho da Furna e que, no seu todo, confronta do sul com o Monte dos moradores de S. João do Campo e com a mata do Gerês, do nascente com a mata do Gerês, do norte com montes dos moradores de Vilarinho da Furna e pelo poente com terrenos da freguesia de Brufe e outros, sendo a linha divisória desta área emprazada constituída pela série de pontos indicados na escritura de emprazamento que, por certidão se juntam.

A transmissão deste domínio para as A. A. e demais comproprietários foi devidamente registada. Compreendido na área emprazada de todo aquele montado existe no seu lado ou orla nascente um terreno inculto com árvores e tojo denominado “Cova de Mamua”, inscrito na matriz sob o artº 3717 de fls. 9 – doc. de fls. 9, junto aos autos apensos de embargo.

A linha divisória deste terreno é, do lado nascente por onde confina com a Serra do Gerês, sujeita ao Regime Florestal, constituída pelo alinhamento dos pontos seguintes, a contar do sul para o Norte, desde o Rio Homem: Rio Homem, Chã das Ovelhas, Cabeço da Pousada, Outeiro Agudo, Corrainhas, conforme se lê na escritura de emprazamento e no auto de medição e escritura juntos.

Como comproprietários do aludido terreno estão na sua posse, pacífica, pública e contínua, sem a menor oposição desde 17 de Agosto de 1.895.

Assim, concluem por pedir que a acção que propõem seja julgada procedente e provada e, em consequência, lhes seja reconhecido o domínio, ou condomínio sobre o aludido terreno e a sua posse exclusiva desde 17 de Agosto de 1895, reconhecendo-se como linha divisória a indicada, e nos aludidos documentos de vistoria, medição e emprazamento de 1.895.

Citado o Magistrado do Ministério Público como representante do Estado veio, tempestivamente, contestar mas só depois de prolongadas e sucessivas prorrogações do prazo para o fazer.

Em resumo, diz o Mº Pº que se trata, na verdade, de terrenos particulares, simplesmente encontram-se sujeitos ao Regime Florestal pelo Dec. de 9-9-904 e que os limites de tal montado em questão são os fixados na nota cadastral que indica.

O Tribunal é competente e não existe no processo qualquer nulidade, ou excepção que obstem à apreciação do mérito da causa.

A questão a dirimir é, parece-me, meramente de direito e pode ser decidida com segurança nesta altura.

Assim, atento o que se dispõe no artigo 510º alínea c) do Cód. do Processo Civil passo a conhecer directamente o pedido.

E conhecendo:

A questão suscitada no articulado cifra-se, a meu ver, na interpretação a dar aos artºs 1º, 2º, 3º e 4º do Dec. de 9-9-904.

A questão dos limites, tal como é posta, não tem qualquer interesse. Não diz o Estado que além dos limites que aponta não tenham os terrenos a natureza de particulares. Parece mesmo dar a entender que se trata sempre de terrenos desta natureza.

O artº 2º do Decreto referido submete ao Regime Florestal “os terrenos compreendidos ..... aos povos de Vilarinho das Furnas”. “Primum conspectum” poder-nos-ia parecer – “ut” Magistrado do Mº Pº que a esse regime ficaria, então, submetido o terreno em questão. Logo, porém, a letra deste artigo afasta tal conclusão, na medida em que fala de “Povos de Vilarinho das Furnas”.

A escritura de 17-8-95, transmitiu, sem dúvida, para os A. A. a propriedade e posse do terreno a que vimos de aludir, sendo certo que os A. A. e demais comproprietários são pessoas singulares.
Admitindo, porém, que assim não é, da leitura dos artigos 3º e 4º infere-se que a submissão ao Regime Florestal dos terrenos a que o artigo 2º alude não funciona “ipso iure”. Ou se tornava necessária uma expropriação ou então uma declaração de submissão voluntária ao regime florestal dos possuidores, o que é compreensível pois, se assim não fora cairiamos no confisco. Quer, porém, a possibilidade da expropriação quer a feitura dessa declaração teria de ser precedida de uma “intimação” aos possuidores. Sucede, então, que nunca tal intimação foi feita por quem quer que seja.
No artigo 3º declarou-se a utilidade pública desses terrenos. Este preceito é nem mais nem menos que uma das “condições de fundo” para que a expropriação pudesse vir a ser decretada.

É sabido que na Constituição Política em vigor (artº 43º, § 1º) se consagra o princípio da inviolabilidade do direito de propriedade. Todavia, se o interesse público postular a necessidade de que o proprietário seja privado ou despojado daquilo que lhe pertence, impõe-se como corolário daquele princípio que a este deva ser paga uma indemnização, cujo montante se ajuste tanto quanto possível ao valor real dos bens de que é despojado, ou seja, uma quantia destinada aressarci-lo dos prejuizos que lhe advêm de tal privação.

É exactamente nisto que consiste a expropriação por utilidade pública, sem dúvida, a mais importante restrição de direito público. E é justamente o facto de ao proprietário dever ser atribuida uma indemnização, que afigura se distingue da figura do confisco ou expoliação.

Compreende-se, então, a necessidade de rodear o processo expropriativo de particulares cautelas, estabelecendo, por um lado, condições de fundo que pressupõem a declaração de utilidade pública e, por outro lado, requisitos de forma.

O artº 3º é nem mais nem menos do que uma disposição que prevê a utilidade pública e, portanto, uma das condições de fundo para que a expropriação pudesse vir a ser decretada (neste sentido, vide o nosso livro Expropriações por utilidade pública, a págns. 6 e 7).

Não havendo, então, qualquer expropriação nem qualquer declaração (opção) de submissão voluntária ou querida pelos possuidores do terreno em questão, é manifesto que eles ainda se encontram no Condomínio dos Autores o que lhes foi conferido pela escritura de 17-8-1895 e depois do seu domínio pleno por remissão do foro em causa.

Por tudo o exposto, julgo a presente acção inteiramente procedente e provada e, por isso, reconheço o domínio ou condomínio dos A. A. sôbre o terreno em questão e a sua exclusiva posse desde 1895 (17 de Agosto), condenando o Estado a reconhecer esse condomínio dos A. A. sôbre o mesmo terreno e também a reconhecer como linha divisória a indicada no artigo 4º da petição, nos documentos de vistoria, medição e emprazamento de 1895, abstendo-se da prática de actos ofensivos do domínio e posse dos A. A. e demais comproprietários.(Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, Acção Sumária nº 4226 – 2ª Secção)

O Professor Manuel Antunes esclarece ainda que:

Não se ficaram por aqui as investidas do Estado contra o Monte de Vilarinho. Assim, em 17 de Agosto de 1967, para fazer um estradão entre o Lindoso e a Portela do Homem, os Serviços Florestais derrubaram a parede de vedação, que separa os terrenos de Vilarinho da Furna e do Lindoso, começando a abrir um caminho florestal. Procedeu-se ao imediato embargo da obra e consequente acção judicial, sendo o Estado, mais uma vez, condenado por sentença de 31 de Julho de 1969 (Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, Acção Ordinária nº 5.454 de 1967 – 2ª Secção).

A posse destes montes estaria ainda na origem de um conflito entre a AFURNA - associação que representa os proprietários do Monte de Vilarinho - e um Director do Parque Nacional da Peneda-Gerês. No âmbito do qual  a posse, por acordo entre as partes, da propriedade foi novamente confirmada no Tribunal de Círculo de Braga, em 13 de Outubro 1995,  E o PNPG, pagou, então, à AFURNA a quantia de seiscentos mil escudos para a compensar dos trabalhos de corte e extracção de madeiras do Pinhal da Bouça da Mó (Tribunal de Círculo de Braga, Acção Ordinária nº 89/94 – 1º Juizo).

Presença histórica do urso em Portugal 8

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

Anexo I. Registos documentais posteriores ao séc. XVII, apresentados por ordem cronológica
 
Doc. 1

1728 – [Padre José de Matos FERREIRA, Thesouro de Braga descuberto no Campo do Gerez, Braga, 1728] Edição fac-similada da Câmara Municipal de Terras de Bouro, 1994.

“Neste sitio (…) estão algũas Alverices redondas, feytas de muyto boa pedra, e bem ajeitada, e passão de ter vinte palmos de alto; principião em bayxo em circuito pequeno, e acabão em mayor âmbito, e assim estão as sua paredes muyto empenadas para fora, sem por ellas poder sobir cousda algũa, ainda que as pedras não estiverão tão ajustadas, como estão. Estas Alverices fizerão os antigos para guardar as suas colmeas, pois erão único abrigo que tinhão para escaparem à fereza dos ussos que erão tantos naquele tempo que sobião as paredes e, entretanto dentro pegavão nos cortiços das abelhas e os levavão a donde havia agoa, e tirando os tampos dos cortiços, metião-nos na agoa, e afogadas as abelhas, e comião livremente o mel.”

“A este feroz e porfiado animal fazião render os caçadores pondo em o tronco de hũa arvore hũm pouco de mel com um masso, e hum certo engenho, que quando hia a comer do mel davalhe na cabeça, e elle tanto mais porfiava de gostar, athe que o masso o fazia render, e ficava de vencido. Hoje se não acha no Geres tal casta de animal por causa dos grandes fogos que sempre continuamente os lavradores andão lançando nos montes, e o ultimo que se matou, conforme referem os velhos da terra, foy pouco mais ou menos no anno de 1650, na Quelha da Ursa, que fica para a Chã da Fonte, junto à Casa da Neve”.

Doc. 2

1736, Junho, 09 – [António AFONSO – “Notícia da freguesia de S. João do Campo que mandou o Dr. Vigário-Geral aos 9 de Junho de 1736”, Cadernos de Cultura 4, Terras de Bouro, Território Museu da Montanha, Câmara Municipal de Terras de Bouro, 2001, p. 20]

“A demais caça são águias reays, javalizes, lobos, cabras bravas que parecem veados, corças, lobos cervais. Ursos já hoje não apparecem por cauza dos fogos que cada passo se lança nos montes”

Doc. 3

1744 – Códice dos Casais de Pincães. P.e Diogo Martins Pereira [transcrição de cópia de 1813, por António Martinho BAPTISTA]

“FAFIÃO – “Entendendose hir a extinguindose [os lobos cervais] como se extinguirão os ursos pelo cui[da]do que os moradores tem de os preceguir, e caçar andando de dia e de noute athé os matar, ou fazer fugir p[ar]a os montes da Irmida e Villar da Veiga, donde também os perseguem com notável cuidado (…)” [fl. 13]

Doc. 4

1758 – Na memória paroquial da freguesia de Outeiro. [Rogério BORRALHEIRO, Montalegre Memórias e História, Montalegre, 2005]

(...) Há quem se lembre de hum homem da freguesia de Cabril que matou no ditto Gerês um urso. Certifica havê-los nesse tempo por se verem de presente sinaes de muros de colmeas sobre pedras altas para se livrarem delles”.

Doc. 5

Séc. XVIII - [Padre João BARROSO PEREIRA, pároco de Seara, Antigas Histórias de Salto, século XVIII] Versão dactilografada de data e autor desconhecido.

“É muito abundante de caça: perdizes, coelhos, martuxos, fuinhas, aves bastantes, muitos lobos, raposas, porcos bravos, corças, veados, ursos e tantos outros que amolestam os lavradores para os defenderem das vastas colheitas”

“(…) grande quantidade de ursos, que destruíam as colmeias e para sua defeza faziam muros fechados.”

Doc. 6

1835 – [Jornal manuscrito bragançano de 2 de Março de 1835] Pesquisa de João Manuel Neto Jacob publicada na Revista “Brigantia” e na Revista “Montesinho”.

“Os off.es do Regim.to de Inf.ª N. 9 nomearão huma comissão p.a que esta empregue todo o desvelo a apprezentar na 1.ª occazião de paceio Militar os meios q. julgar mais eficases p.ª huma caçada de Urços, q. tencionão fazer neste dia; paresce q. a Comição p.ª satisfazer aos seus Collegas tem reunido a si hum Militar Cidadão interessado neste género de caçadas, esperámos do zello do S.r Baroso (?) de Toenique (?), Presidente desta comissão q não desprese as ideias emitidas pelo Sr. Pote (?) a Comição reunindo asi este Cidadão nós lhe afiançámos o bom rezultado da caçáda.”

Doc. 7

1893 – [Gabriel PEREIRA, Estudos Eborenses – As caçadas, 2ª Parte, Évora 1893]

“Pouco vulgar, julgo, em lugares praticáveis, porque nos ermos montanhosos do norte do país o urso viveu até aos tempos modernos. Em Inverneiras de muitas neves há 50 anos, mais ou menos, ainda os pequenos ursos das Astúrias chegavam às montanhas do Minho e Trás-os-Montes”.

Tuesday, November 23, 2010

Presença histórica do urso em Portugal 7

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

Bibliografia


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BAETA NEVES, C. M. (1980). História Florestal, Aquícola e Cinegética: colectânea de documentos existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Chancelarias Reais. Lisboa.

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BOUZA, M. (2002). El Trampeo y demás artes de caza tradicionales en la Península Ibérica. Editorial Hispano Europea. Barcelona. 351pp.

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Monday, November 22, 2010

Presença histórica do Urso em Portugal 6

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

3. Discussão e considerações finais


"Com base nos registos obtidos, o urso terá ocorrido nas serras do Norte de Portugal até meados do século XX, muito para além de 1650, data anteriormente apontada para a sua extinção em Portugal. O carácter agreste das serras fronteiriças ao longo dos séculos XVIII e XIX, com extensos matagais, reduzida acessibilidade e escasso povoamento humano (p.e. BORRALHEIRO, 2005), pode ter permitido a sobrevivência de uma população residual de urso e, simultaneamente, levado a que esta fosse escassamente documentada por parte de naturalistas e letrados. Consequentemente, face à reduzida disponibilidade de fontes documentais locais, a ocorrência da espécie passou facilmente despercebida. A ocorrência do urso no Norte de Portugal até ao inicio do século XX poderá ter tido origem em movimentos dispersivos de animais provenientes de núcleos reprodutores residuais bem documentados em Espanha, situados a menos de 50 km da fronteira portuguesa, como sejam a Serra da Queixa (centro da Província de Ourense), a Serra do Faro (limite das Províncias de Pontevedra, Ourense e Lugo) e a região de Caurel/Sanábria/La Cabrera (limite das Províncias de Ourense, Zamora e Leão) (NORES & NAVES, 1993; GRANDE DEL BRIO et al., 2002). Os ursos machos apresentam um acentuado comportamento errático durante a época do acasalamento, podendo percorrer distâncias superiores a 40 km da sua área de presença habitual (CLEVENGER & PURROY, 1991). Como resultado deste comportamento, ainda recentemente (p.e. 2006) tem sido confirmada a presença ocasional de ursos provenientes da população cantábrica, na região de Sanábria/La Cabrera situada a pouca mais de 20 km a Norte da Serra de Montesinho (GRANDE DEL BRIO et al., 2002). Desta forma, não é de estranhar a presença de ursos ao longo da primeira metade do século XX nas Serras do Gerês e do Larouco, se considerarmos que a Serra da Queixa, situada a menos de 30 km da fronteira portuguesa, albergou um núcleo reprodutor de urso até à década de 1930 (NORES & NAVES, 1993; JUSTO MÉNDEZ, 1993; GRANDE DEL BRIO et al., 2002). Porém, um dos registos documentais recolhidos aponta para a aparente reprodução do urso em 1920 na Serra do Larouco. Face a esta evidência, será necessária uma maior investigação através da recolha de fontes documentais ou de testemunhos orais, que permita avaliar se a presença de ursos no início do século XX nas serras fronteiriças se limitaria a incursões esporádicas de indivíduos provenientes de núcleos reprodutores situados em Espanha, ou se, pelo contrário, constituíam os últimos exemplares de uma população residual ainda com reprodução.

Os resultados obtidos para o Norte de Portugal evidenciam ainda a necessidade de estudos adicionais que permitam detectar evidências da presença do urso nos últimos séculos em outras regiões do país, e assim esclarecer a evolução da sua área de ocorrência. A pesquisa de fontes documentais de carácter local, em território nacional ou nas regiões espanholas fronteiriças, revela-se como uma das principais abordagens que deverá ser realizada. No entanto, o inventário, caracterização e cronologia do património construído associado a este carnívoro, em particular das silhas, poderá constituir uma fonte de informação complementar. A aparente restrição e coerência geográfica das áreas de edificação de silhas a nível nacional poderá reflectir a existência de importantes núcleos populacionais de urso, tal como parecem indicar as fontes documentais obtidas para o Noroeste e Nordeste do país. Adicionalmente, o bom estado de conservação das silhas poderá estar relacionado com a ocorrência recente desta espécie, face ao esforço humano que implica manter estas estruturas nas suas dimensões originais e   facto da protecção face ao urso aparentar ser a principal razão que assim o justifica. Tal é evidente em determinadas regiões da Galiza, como as Serras da Queixa, Caurel e Faro, onde a espécie estava presente há menos de um século. De forma coincidente, a identificação de silhas em excelente estado de conservação nas Serras do Gerês e Larouco, foi corroborada no presente trabalho através de vários registos documentais que atestam a sobrevivência do urso durante o século XIX e início do século XX. Assim, outras áreas do país onde estas estruturas apresentem um estado de conservação próximo do original, como por exemplo na bacia do médio Tejo (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002), deverão ser alvo preferencial para a pesquisa de fontes documentais de carácter regional, de forma a esclarecer a área de ocorrência de urso em épocas recentes."

Sunday, November 21, 2010

Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo
Todos os Poemas
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

 A casa dos meus pais sofreu um golpe, mas está a resistir. Está a resistir!

Presença histórica do urso em Portugal 5

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

2. Presença histórica e extinção do urso em Portugal

"A ocorrência histórica do urso por todo o território nacional é comprovada pela toponímia, quer integrando o vocábulo osso, ou utilizando uma grafia actualizada[4]. No que respeita a fontes documentais, os registos mais antigos relativos à presença da espécie em Portugal encontramse nos forais do século XI e XII, e relacionam-se com o facto de a caça grossa estar sujeita ao tributo de condado ou montaria. Este tributo obrigava os caçadores a entregar, ao rei ou seu representante, a parte mais nobre de cada peça de caça maior abatida: regra geral, do javali ou porco-montês davam o corazil ou espádua; do veado, corço ou cabra-brava entregavam a perna, e do urso as mãos[5]. Nas inquirições de 1258, que, basicamente, pretendem apurar os direitos devidos ao rei, ficou consignado esse imposto medieval aplicado à caça ao urso, em várias freguesias do Noroeste do país (AZEVEDO, 1977; GONÇALVES, 2006).

Figura 4. Representação de um pezugo asturiano, armadilha
destinada à captura de urso (retirado deBouza, 2002).
O urso, juntamente com outras espécies como o javali, possuía desde o início da Idade Média um lugar de destaque como alvo de uma caça de entretenimento e, em simultâneo, de preparação guerreira, por parte dos monarcas e da classe mais nobre. Desta forma, e ao contrário por exemplo do lobo (DOMINGUES, 2005a), o urso foi, desde cedo, alvo de alguma protecção por parte da monarquia. São frequentes os documentos que fixam coutadas, em favor do rei ou de algum nobre poderoso, e onde se condiciona a caça, não só ao urso, mas também ao javali, veado e até a caça miúda como o coelho, a lebre e a perdiz.

Ao longo do século XV o urso ainda estava presente a Norte do rio Douro e em vários locais distribuídos pelo interior do país, nomeadamente na Beira Interior (Pinhel, Trancoso e Ribacôa) e no Alentejo (Moura e Portel), onde existem referências documentais à sua caça ou abundância (BAETA-NEVES, 1967). Contudo, é a partir deste século que o urso aparenta começar a rarear em território português, principalmente na metade sul do país, devido à perseguição directa e à destruição das extensas manchas florestais onde se abrigava (BAETA-NEVES, 1967; DEVYVARETA, 1986). Como consequência, são publicados vários diplomas condicionando a sua caça, diplomas esses de âmbito genérico e promulgados pelos monarcas portugueses, e alguns deles possuindo o valor de lei ou ordenação geral do reino. A título de exemplo, D. João I, por carta de 5 de Fevereiro de 1412, proibiu a caça de ursos, porcos monteses e cervos nas comarcas de Entre-Tejo-e-Guadiana e Estremadura (BAETA NEVES, 1980). Posteriormente, seu filho D. Duarte (1433-1438), publicou uma lei que impunha uma coima de mil libras a qualquer que matasse um urso por todo o reino, sem licença de el-rei (ORDENAÇÕES AFONSINAS, 1984), no que provavelmente constitui uma das primeiras leis direccionadas à protecção de uma espécie silvestre, a nível nacional. No entanto, o povo insurge-se com frequência contra as coutadas e a proibição de caça de animais bravios, nomeadamente do urso, por estes lhe causarem avultados prejuízos nos gados e nas colheitas (BAETA NEVES, 1980).

Por isso, e apesar de condicionada, a perseguição ao urso por parte das comunidades locais continua a ser intensa, nomeadamente através da sua caça e da destruição do habitat por incêndios (documento 1, 2 e 3, no Anexo I). Como resultado, nos finais do século XVI a presença de urso em Portugal é considerada por vários autores como estando somente confinada às montanhas fronteiriças do extremo Noroeste, nomeadamente à Serra do Gerês (LEITE DE VASCONCELOS, 1936; BAETA-NEVES, 1967).

Se a presença histórica do urso em Portugal é uma realidade inquestionável, já a data da sua extinção constitui um facto deficientemente investigado. Documentos do século XVIII referem, com precisão, a morte em 1650, do que tem sido considerado o último exemplar na Serra do Gerês e, em simultâneo, em Portugal (documento 1 e 2, no Anexo I). O único estudo específico que aborda a presença e extinção desta espécie em Portugal (BAETA-NEVES, 1967), baseia-se nestes registos para apontar a data de extinção do urso em território português, a qual tem vindo a ser aceite junto da comunidade científica, em trabalhos recentes (SANTOS-REIS & MATHIAS, 1996; MATHIAS et al., 1998; CABRAL et al., 2005). No entanto, a pesquisa documental e bibliográfica, principalmente em autores espanhóis, realizada no âmbito do presente trabalho apresenta evidências da sobrevivência do urso em território português para além do século XVII e até datas surpreendentemente recentes, em particular na região fronteiriça compreendida pela Serra do Laboreiro (Melgaço), as Serras do Gerês/Larouco (Terras de Bouro/Montalegre) e a Serra de Montesinho (Bragança/Vinhais).

No que diz respeito ao século XVIII, um documento de 1744 proveniente de Pincães, parece referir ainda o urso como presente na Serra do Gerês, embora perto de se extinguir face à intensa perseguição que os habitantes locais lhe moviam (documento 3, no Anexo I). Também o Padre João Barroso Pereira, refere a presença de ursos na região de Salto (Montalegre) num documento de datação indeterminada, mas que parece corresponder ao século XVIII (documento 5, no Anexo I). Em território espanhol, FERNANDEZ DE CÓRDOBA (1964) e PIÑEIRO MACEIRAS (2000) citam várias fontes documentais do final do século XVIII, que referem ainda a abundância de ursos nas montanhas que ladeiam os rios Tâmega e Lima nomeadamente Requiás (Muíños) e Verín, situados junto ao limite dos concelhos de Montalegre e de Chaves, respectivamente.

Para o século XIX, NORES & NAVES (1993) refere que a obra de 1866 de Fernando Fulgosio, “Cronica de la província de Orense”, atesta a presença do urso na vertente espanhola da Serra do Laboreiro e da Serra do Gerês no primeiro quartel do século XIX. Também TABOADA CHIVITE (1971) menciona que, em 1825, um habitante de San Pedro de la Torre (Sierra do Laboreiro) reclamou ao Concelho Real os prejuízos efectuados pelos ursos, ao que lhe foi concedida uma autorização para os matar. GRANDE DEL BRIO et al., (2002) apresenta evidências documentais de vários ursos abatidos na vertente espanhola da Serra de Montesinho, durante o final do século XIX. Para o território português, encontramos outras referências documentais que indicam também a presença de urso no decorrer do século XIX. Na região de Bragança, foi publicada em 2 de Março de 1835, no jornal manuscrito “Choronica de Bragança”, uma notícia que aparentemente alude à programação de uma caçada ao urso na Serra de Montesinho (documento 6, no Anexo I). Além disso, e a corroborar os registos atrás mencionados, Gabriel Pereira refere que até meados do século XIX ainda os ursos ocorriam, de forma irregular, nas montanhas do Minho e Trás-os-Montes (documento 7, no Anexo I).

Porém, as últimas referências ao urso na região fronteiriça do norte de Portugal datam do início do século XX. GRANDE DEL BRIO et al., (2002) menciona evidências documentais da sua presença em 1905 e 1920 na região de Lubián e Sanábria (Zamora) respectivamente, ambas situadas a menos de 10 km da fronteira portuguesa na Serra de Montesinho. JUSTO MÉNDEZ (1993), apesar de não citar as fontes documentais ou orais em que se baseia, refere que desde inícios do século XX até 1930 ainda subsistiam alguns exemplares na zona fronteiriça constituída pelas serras do Gerês e Larouco. Em particular, menciona que em 1915 eram ainda avistados ursos com alguma frequência na zona de Portela do Homem (Serra do Gerês), e que em 1920 “fue muerta una osa, acompañada de dos crias, que los cazadores sorprendieron en la sierra de Larouco, entre Baltar y Villamayor de Gironda”, junto à fronteira portuguesa. O último registo confirmado de urso nas montanhas fronteiriças do Noroeste de Portugal, é todavia mais recente e diz respeito ao abate de um urso, em Junho de 1946, por Camilo Lloves Gonzalez, habitante de Couceiros na Serra do Laboreiro, a menos de cinco quilómetros da fronteira portuguesa de Melgaço. Este facto, publicado no jornal “Pueblo Galego” de 17 de Junho de 1946 e frequentemente citado em fontes bibliográficas posteriores (e.g. FERNANDÉZ DE CÓRDOBA, 1964; TABUADA CHIVITE, 1971; PIMENTA, 2001, DOMINGUES, 2005b), foi confirmado por um dos autores do presente trabalho (F. Álvares) através de uma entrevista a Camilo Lloves em 4.10.1996, o qual, apesar dos seus 80 anos de idade, relatou em pormenor os acontecimentos. O urso abatido era um macho com 102 kg (possivelmente sub-adulto) e, na altura, dizia-se que nessa região andariam três ursos que com frequência destruíam colmeias e silhas, e dos quais um foi o que veio a ser abatido."


4 Rio dos Ossos (Melgaço / Lisboa / Oliveira de Azeméis); Casal dos Ossos (Lisboa); Vilar dos Ossos (Vinhais); Valdossos (Vila Nova de Famalicão); Serra da Ossa (Alentejo); Valdossa (Alijó); Osseira (Caldas da Rainha / Óbidos); Ursa (Albufeira / Alcácer do Sal / Almodôvar / Alportel / Figueira de Castelo Rodrigo / Góis / Proença-a-Nova / Santiago de Cacém / Sertã / Vila Viçosa); Cova do Urso (Arganil); Covão do Urso (Beira Baixa); Pego d’Urso (Sátão); Pia do Urso (Batalha); Pinhal do Urso (Leiria / Montijo); Vale do Urso (Fundão).
5 “si fuerit ad venationem et mactaverit porcum, dabit spatulam; de cerbo, de capra montesa, de corzo, dabit pernam; de ursso, dabit manus.”

Saturday, November 20, 2010

Presença histórica do urso em Portugal 4

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)


PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues


1. Património construído associado ao urso

"A relação das comunidades humanas com o urso originou um rico e único património construído. Este legado cultural é constituído, sobretudo, por estruturas dedicadas à captura do urso e por mecanismos de protecção dos bens contra os seus ataques. Como principais bens a proteger, destaca-se a produção de mel, actividade com grande importância na economia rural desde a Idade Média (HENRIQUES et al., 1999), e para a qual o urso constitui uma ameaça devido ao seu frequente hábito de destruir as colmeias para obter alimento (CLEVENGER & PURROY, 1991).

Os muros apiários são exemplos de arquitectura popular, destinados a assegurar a protecção das colmeias (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002). Com frequência, os muros apiários consistem em simples e toscos cercados de pedra seca com uma altura de cerca de 1 metro e dispostos em redor de uma área de dimensão variável, com o objectivo de protegerem os cortiços do fogo, bem como da pilhagem por parte de animais domésticos e selvagens de média dimensão, como o texugo (Meles meles) (Figura 1).


Figura 1. Muro apiário simples, Fafião, Montalegre (fotografia de P. Primavera).

No entanto, em algumas regiões da Península Ibérica, nomeadamente na Cordilheira Cantábrica, os muros apiários são edificações monumentais mais elaboradas, cujo principal objectivo que se lhes atribui é impedir a entrada no interior do recinto de um possante apreciador de mel, o urso (TORRENTE, 1999; BOUZA, 2002). Estas estruturas, conhecidas em Espanha por colmenales, alvarices ou cortinos, são identificáveis pela execução de muros com face externa homogénea e altura por vezes superior a 3 metros, e pela existência de um capeado projectado para o lado exterior do recinto, que forma um rebordo no topo ou a ¾ da altura da parede. Por vezes é provida de uma sólida porta que permite a entrada do apicultor, mas na maior parte dos casos o interior do recinto torna-se apenas acessível através da utilização de uma escada (BOUZA, 2002) (Figura 2).

Figura 2. Silha ou muro apiário destinado à protecção face ao urso,
Serra da Queixa, Ourense, Espanha.(fotografia de F. Álvares)

Em Portugal encontram-se identificados muros apiários, ainda que muitas vezes em avançado estado de degradação, que apresentam uma construção elaborada e robusta, caracterizada pela execução de muros dobrados com cerca de 1 m de espessura e mais de 2 m de altura, e rematados por placas avançadas para o exterior (HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002). As características de construção destas estruturas permitem enquadrá-las na tipologia dos muros apiários existentes no Norte de Espanha, que se destinam à protecção face às investidas dos ursos. Desta forma, constituem um importante testemunho material da presença histórica desta espécie em Portugal e da sua relação com as comunidades rurais. Dependendo da região do país, estas estruturas são vulgarmente denominadas silhas, colmeais, muros ou alvarizes (HENRIQUES et al., 1999). No presente trabalho optámos por designá-las como silhas, de forma a evidenciar as características estruturais que as parecem destinar à protecção face ao urso, e assim distingui-las dos muros apiários simples de menores dimensões.

A função destas estruturas como estando associada ao urso encontra-se actualmente perdida na memória colectiva da maioria das comunidades locais. Porém, foram recolhidas várias referências documentais do século XVIII que atestam a construção de silhas pelos habitantes do Norte de Portugal, no intuito de proteger as suas colmeias face à frequente destruição provocada por estes animais (documento 1, 4 e 5, no Anexo I).

A prospecção de campo e a recolha de registos fotográficos e bibliográficos (p.e. HENRIQUES et al., 1999; RODRIGUES & NEVES, 2002) permitiu confirmar vestígios materiais de muros apiários com características atribuíveis a silhas, num total de 28 concelhos de Portugal. Acrescese ainda mais 6 concelhos onde a presença deste tipo de estruturas se considera provável, tendo por base somente testemunhos orais (Figura 3). De forma geral, as áreas com edificação destas estruturas parecem coincidir com as principais regiões montanhosas do Noroeste de Portugal (Serras de Arga, Soajo, Amarela, Gerês, Cabreira, Barroso, Larouco, Alvão, Padrela), o extremo Norte do Distrito de Bragança (Serras da Coroa e Montesinho) e as bacias do médio Douro e Tejo, junto à fronteira com Espanha. Existem ainda evidências não confirmadas, da edificação de muros apiários semelhantes a silhas na Beira litoral (Serras da Arada e Montemuro), no Maciço Calcário Estremenho (Serras do Sicó e Candeeiros) e na bacia do médio Guadiana (Figura 3).


Figura 3. Concelhos com edificação confirmada ou provável de muros apiários com
características estruturais atribuíveis a silhas (destinados à protecção face ao urso).

Na Península Ibérica existem também registos da construção de engenhos destinados a dar caça ao urso. Em Espanha, é referida a utilização de covas armadilhadas especificamente construídas para a captura deste animal (PIDAL & DE QUIRÓS, 1897; JUSTO MÉNDEZ, 1993; BOUZA, 2002), apesar de em Portugal não se ter conhecimento de fontes documentais que comprovem a sua utilização. Nas Astúrias conhece-se ainda a utilização de pequenas construções em pedra destinadas à captura do urso, com o nome popular de pezugos. Nestas armadilhas o chamariz consistia na deposição de um cortiço de abelhas assente numa plataforma de madeira que, ao cortiço ser retirado, accionava a queda de uma grande pedra ou tronco sobre o animal (Figura 4; TORRENTE, 1999; BOUZA, 2002). No que respeita a Portugal  foi possível recolher uma referência documental do século XVIII que descreve como os habitantes da Serra do Gerês davam caça a este carnívoro através de um engenho armadilhado com um tronco de árvore e que utilizava um cortiço de mel como isco (documento 1, no Anexo I). A descrição desta técnica de caça permite associá-la ao pesugo, cuja utilização se encontrava somente referenciada para determinadas áreas das Astúrias (BOUZA, 2002). No entanto, as prospecções de campo realizadas até à data não permitiram obter qualquer evidência de vestígios materiais destas estruturas cinegéticas em Portugal. Por fim, encontra-se referida com frequência na documentação medieval, uma armadilha de caça destinada ao veado, javali e urso, denominada madeiro. Este tipo de armadilha já aparece mencionado nos forais da Beira do século XI, porém não se conhece qualquer descrição detalhada do seu modo de funcionamento."

Friday, November 19, 2010

Presença histórica do Urso em Portugal 3

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)

PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

Introdução

"A análise da área ocupada por uma espécie animal em tempos históricos e das causas que conduziram ao seu desaparecimento extravasa a órbita das ciências biológicas e envolve necessariamente uma abordagem multidisciplinar (NORES, 1986). Neste âmbito, a pesquisa e interpretação de fontes de documentação histórica constitui uma das ferramentas mais frequentemente utilizadas (NORES & VON LETTOW-VORBECK, 1992; ÁLVARES, 1997; TORRENTE, 1999; DOMINGUES, 2005a; GONÇALVES, 2006). Porém, o estudo dos sistemas de conhecimento, práticas e crenças que as comunidades humanas possuem em relação à fauna silvestre – denominado etnozoologia (REYES-GARCÍA & MARTI SANZ, 2007) – apresenta-se, igualmente, como uma importante fonte de informação, nomeadamente para espécies que possuem uma estreita relação com o Homem pelo seu interesse cinegético ou pela competição por recursos (ÁLVARES et al., 2000; BOUZA, 2002; ÁLVARES & PRIMAVERA, 2004). Este é o caso dos grandes carnívoros, e em particular, do urso-pardo (Ursus arctos).

Na Península Ibérica, o urso sofreu uma acentuada redução da sua área de distribuição devido à acção directa e indirecta do Homem, e encontra-se actualmente circunscrito às montanhas do Norte de Espanha, com populações reduzidas a menos de 100 indivíduos na Cordilheira Cantábrica e cerca de uma dezena nos Pirinéus (NAVES & PALOMERO, 1993). A presença e distribuição histórica do urso em Espanha têm sido investigadas em vários estudos (p.e. NORES & NAVES, 1993; CASANOVA, 1997; TORRENTE, 1999; PIÑEIRO MACEIRAS, 2000; GRANDE DEL BRIO et al., 2002). Pelo contrário, no que respeita a Portugal, esta temática apenas conta com o estudo monográfico de BAETA NEVES (1967), que situou a extinção desta espécie no nosso país em meados do século XVII. Porém, recentemente, surgiram evidências para uma possível sobrevivência desta espécie em território nacional em datas posteriores (PIMENTA, 2001; DOMINGUES, 2005b).

O presente trabalho pretende contribuir para o conhecimento da presença histórica do urso em Portugal e da sua relação com o Homem. Para tal, efectua-se: i) a descrição do património construído associado ao urso, a nível ibérico; ii) a análise da ocorrência desta espécie em Portugal desde a Idade Média, com base numa compilação bibliográfica e pesquisa de fontes documentais posteriores ao séc. XVII, respeitantes ao território português e a regiões espanholas fronteiriças; e iii) a discussão da provável data de extinção do urso em território nacional, com base nas novas evidências obtidas."

Thursday, November 18, 2010

Presença histórica do urso em Portugal 2

(publicação parcelar de artigo publicado no nº 3 da Revista AÇAFA)

PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS
Francisco Álvares e José Domingues

Resumo

"O presente trabalho descreve o património construído associado ao urso-pardo em Portugal e analisa a ocorrência desta espécie desde a Idade Média, com base numa pesquisa bibliográfica e documental.

A relação das comunidades rurais com o urso originou um legado cultural constituído por engenhos armadilhados dedicados à sua caça e por muros apiários de construção robusta destinados à protecção das colmeias contra as suas investidas.

Com base nos registos obtidos, o urso ainda ocorria nas serras fronteiriças do Norte do país durante o século XIX e até meados do século XX. Desta forma, esta espécie esteve presente muito para além de 1650, data anteriormente apontada para a sua extinção em Portugal. A presença de ursos em território português durante o século XX deverá ter resultado, maioritariamente, de incursões esporádicas de indivíduos provenientes de núcleos reprodutores situados em Espanha. No entanto, existem evidências que poderiam ter constituído os últimos exemplares de uma população residual ainda com reprodução. Por fim, evidencia-se a necessidade de estudos adicionais que permitam avaliar a possível presença de urso em épocas recentes, noutras regiões de Portugal."

Wednesday, November 17, 2010

Brandas de Sistelo



Gerês, 3 de Agosto de 1959 - Gosto de rever certas paisagens, ainda mais do que reler certos livros. São belas como eles, e nunca envelhecem. O tempo não degrada a linguagem que as exprime. Pelo contrário, enriquece-a, até, num esforço de perfeição constante que, embora involuntário, parece intencional.Faz alargar a copa a um carvalho, e reforça determinado volume; outaniça precocemente algumas folhas, e esbate um pouco a cor afogueada duma encosta; entoira um ribeiro e gera um lago onde se espeçha o perfil dos montes. E eu olho, olho, e não me canso de admirar uma placidez assim permanentemente movimentada. Pobre artista que sou, sei que é esse renovo ininterrupto que falta ás obras puramente humanas. Mesmo as geniais, são momentos vibráteis na qietude da eternidade, ilhas vulcânicas no mar morto do tempo. Agitam-se, mas dentro do seu anquilosamento histórico.

Miguel Torga, Diário VIII

Recordei-me desta entrada do Torga ao longo da caminhada do último Domingo pelas Brandas de Sistelo. É que se o  trilho já era conhecido, a paisagem estava diferente. As previsões meteorológicas do dia assustaran muitos dos interessados e, em consequência, a participação não foi elevada. É verdade que o dia cumpriu com o prometido, mas eu adoro caminhar à chuva. Só esses dias nos proporcionam a visão da serra no máximo da sua força. Por todo o lado rebentam águas e nos vales profundos as linhas de água correm com uma violência admirável. Há muito tempo que não caminhava num dia assim e valeu a pena.

A informação do trilho realizado encontra-se disponível no site da AAEUM. Voltaremos a este trilho mais algumas vezes.


Presença histórica do urso em Portugal 1

Na preparação de caminhadas que pretendo realizar em datas próximas encontrei diversa informação que espero tratar nos dias frios que se aproximam. Nos últimos tempos entretive-me com um artigo de Francisco Álvares e José Domingues, publicado no nº 3 da Revista AÇAFA: "PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS". Por me parecer interessante em próximas entradas farei a sua publicação parcelar.

Monday, November 15, 2010

Notas sobre o Urso

Silha - Trilho Silha dos Ursos (PNPG)

“Neste sitio (…) estão algũas Alverices redondas, feytas de muyto boa pedra, e bem ajeitada, e passão de ter vinte palmos de alto; principião em bayxo em circuito pequeno, e acabão em mayor âmbito, e assim estão as sua paredes muyto empenadas para fora, sem por ellas poder sobir cousda algũa, ainda que as pedras não estiverão tão ajustadas, como estão. Estas Alverices fizerão os antigos para guardar as suas colmeas, pois erão único abrigo que tinhão para escaparem à fereza dos ussos que erão tantos naquele tempo que sobião as paredes e, entretanto dentro pegavão nos cortiços das abelhas e os levavão a donde havia agoa, e tirando os tampos dos cortiços, metião-nos na agoa, e afogadas as abelhas, e comião livremente o mel.”

“A este feroz e porfiado animal fazião render os caçadores pondo em o tronco de hũa arvore hũm pouco de mel com um masso, e hum certo engenho, que quando hia a comer do mel davalhe na cabeça, e elle tanto mais porfiava de gostar, athe que o masso o fazia render, e ficava de vencido. Hoje se não acha no Geres tal casta de animal por causa dos grandes fogos que sempre continuamente os lavradores andão lançando nos montes, e o ultimo que se matou, conforme referem os velhos da terra, foy pouco mais ou menos no anno de 1650, na Quelha da Ursa, que fica para a Chã da Fonte, junto à Casa da Neve”.

[Padre José de Matos FERREIRA, Thesouro de Braga descuberto no Campo do Gerez, Braga, 1728] Edição fac-similada da Câmara Municipal de Terras de Bouro, 1994.

O ano 1650 é normalmente referido como o da extinção do urso no Gerês ainda que alguns ambientalistas deêm hoje como certo que ele terá continuado a existir durante mais anos. Até porque há fontes espanholas que dão conta sua da existência no loutro lado da fronteira. As "alverices" referidas por José de Matos Ferreira são as estruturas que hoje são vulgarmente denominadas de silhas, mas que também podem ser designadas por colmeais, muros ou alvarizes. Curiosamente em Espanha são conhecidas por colmenales, alvarices ou cortinos. A técnica de caça descrita é conhecida nas Asturias por pezugo.

Nas Memórias Paroquiais de 1758 (freguesia de Outeiro) pode ainda ser encontrada uma outra referência ao urso na região do PNPG:

(...) Há quem se lembre de hum homem da freguesia de Cabril que matou no ditto Gerês um urso. Certifica havê-los nesse tempo por se verem de presente sinaes de muros de colmeas sobre pedras altas para se livrarem delles”.

pezugo austuriano

Wednesday, November 03, 2010

Uma leitura - O Mito Moderno da Natureza Intocada



Recentemente foi-me sugerida a leitura de "O Mito Moderno da Natureza Intocada" e sobre o qual deixo um link para uma introdução à obra. Não sou mais que um curioso destas coisas e não tenho pretensão de ir muito mais longe. Quero apenas usufruir com um pouco mais de conhecimento das minhas caminhadas e sobre isso vou escrevendo aqui. Julgo, no entanto, perceber as motivações da sugestão e agradeço. Vai ser umas das minhas leituras nos próximos tempos.

O livro pertence uma corrente moderna que faz uma crítica severa das correntes "presarvacionistas" mais tradicionais. Escrito por Antonio Carlos Diegues, professor do curso de pós-graduação em Ciência Ambiental da USP e do Departamento de Economia e Sociologia Rural da ESALQ, e também um dos coordenadores do NUPAUB (Núcleo de Pesquisa sobre as Populações Humanas e Áreas Úmidas do Brasil), que serviu de influência na realização do livro, cita várias experiências realizadas pelo Núcleo, cujo principal objectivo é o desenvolvimento de projectos de pesquisa com o intuito de estudar e conservar a diversidade biológica e cultural nos ecossistemas de áreas húmidas brasileiras.

Monday, October 25, 2010

Uma leitura

Terminei a leitura de “Terras de Bouro — cem anos de adversidades” de José Araújo editado pela CM Terras de Bouro. É um livro interessante, cheio de apontamentos sobre a história do concelho de Terras de Bouro. Como quase todos os livros escritos na primeira pessoa não é neutro. Pode-se até dizer que está repleto de opiniões e julgamentos pessoais do autor. No entanto, é uma leitura interessante para compreendermos as origens remotas de alguma das antipatias das populações para com o PNPG. A verdade é que o Parque Nacional acaba por corporizar a revolta de quem nos últimos 125 anos se viu privado das termas, dos prados, das veigas submergidas e até do Concelho. Razão pela qual não percebo porque razão os que deveriam atenuar estas tensões não assumem essa responsabilidade.

Tenho pelo autor uma simpatia pessoal que não escondo. Contactei com ele algumas vezes, quase sempre na companhia do meu pai, que foi seu condiscípulo no seminário, e guardo dele a ideia de carácter forte e carismático que a notícia sobre a apresentação do livro e homenagem revela. Ideia que saiu mais reforçada pela leitura do prefácio de Viriato Capela.

A notícia, já citada, dizia que o “ideário político e humano de José Araújo confunde-se com essa luta de séculos dos Búrios”. Talvez seja assim. Razão pela qual a sua visão da história e das coisas de Terras de Bouro é fundamentalmente orgânica. Uma história aprendida e apreendida com os “Búrios” a que pertence. Uma história em que participou com diferentes níveis de responsabilidade. Eu, que apenas procuro saber mais sobre a paisagem que tanto admiro, gostei do livro. Ainda que a distância me permita ter sobre algumas das coisas opiniões diferentes.

Wednesday, October 20, 2010

O orçamento

Circula por aí um texto, atribuído a Rui Barbosa (1), que gostava de citar a propósito do Orçamento. A lenda diz que estando no quintal um ladrão a roubar-lhe uns patos aproximou-se vagarosamente e, surpreendendo-o, quando este tentava pular o muro, disse-lhe:

Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo acto vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

Há quem acrescente que o ladrão terá respondido - Resumindo, eu levo ou deixo os patos?. Pergunta que não espero que me façam.


(1) outros a Bocage.

Monday, October 18, 2010

Os cornos da Fonte Fria



Desde que os vi, desde a capela de S. João da Fraga, que os queria visitar. Primeiro foi o rendilhado que faziam no horizonte que me atraiu, depois percebi como estavam ligados com a história do Barroso. Era por lá que os monges se diriguiam a Espanha e terá sido lá que morreu Fr. Gonçalo Coelho ao retornar de Santa Maria de Cela (Espanha).

No último fim de semana pude finalmente conhecer-los. Os meus companheiros e companheiras de caminhada guiaram-me por caminheiros de pé posto desde a Fraga de S. João. Caminhos que infelizmente se vão perdendo da memória dos homens ao ritmo do crescimento da vegetação. No regresso optamos pelo caminho que o Padre Fontes publicou no seu site e que seria o caminho de Fr. Gonçalo Coelho:

"Saia do Eiró, largo social da aldeia, beba na fonte ao lado, abasteças-se de pão, presunto, chouriça, um cajado e bom calçado, de borracha, se for a pé. Pode também ir de carro, ou a cavalo. Passe pelo forno do povo, todo coberto a granito e compre lá uma broa escura que sabe pela vida. Dirija-se ao alto da aldeia, pela casa fiscal, pela ribeira de Valongo. Pode ir de carro até à fraga de espinheira. Siga a pé, atravesse a ribeira dos Fornos, contorne a Fraga de Burzaleite(1413) e está em Fonte Fria. Suba fácil até aos píncaros e cornos de Fonte Fria, 1456 m, que também fazem fronteira com Espanha. Veja as enormes fragas de Espinheira, Burzaleite, Carvalhosa, Roca Sandeia. Faça escalda com amigos. Cheire a vegetação de aroma intenso, a urze rocha, a giesta branca e amarela, o sabugueiro, a carqueija. Entre Maio e Julho, descubra a 1500 m, os lírios do Gerês, únicos no mundo. Beba água em todas as fontes, coma arandos entre as fragas, apanhe chás dos melhores do mundo, de hipericão, de carqueija, giesta banca, urze, abetónica, teixo, erva erótica da Rita, etc."

Não subi aos píncaros. Fiquei-me na "segurança" de uma plataforma na face Norte a menos de 2 metros do topo. A subida até teria sido fácil, mas não confiei na descida. Numa nova oportunidade talvez me cresçam as asas de Ícaro...

Na aldeia cumpri os rituais de comprar pão e lanchar no Preto. Já tive a sorte de comer pão de Pitões cozido no forno da aldeia, mas agora é feito numas instalações na zona alta da aldeia.
No Preto ficamos um pouco a conversar com os donos do restaurante sobre a história de Pitões e temas da actualidade. A zona é cada vez mais procurada para caminhar e o restaurante é um ponto de encontro de todos os caminheiros. Grupos de estrangeiros fazem da Casa do Preto base para dias de caminhadas na região. Chegam a estar 5 dias em Pitões. Os trilhos que fazem são basicamente os que todos fazemos e cada vez menos se percebe a sanha persecutória com que nos ameaçam. Um Parque Nacional existe para ser visitado e para ser usufruído. Fechado não interessa a ninguém. Não tenho nada contra a regulação, mas nunca perceberei a proibição ou taxação. Principalmente se ela tiver motivações unicamente económicas/orçamentais ou para interesses de actividades comerciais.

Sunday, October 10, 2010

20 anos

Grupo à porta do hotel em Leningrado com os estudantes Russos

Na ponte de Carlos em Praga Interior do autocarro em viagem

Há 20 anos tive a sorte de me meter, com mais 52 colegas da universidade, num autocarro de 2 andares da Caima e percorrer a Europa até à URSS (ainda era assim). Esses dias, particularmente os 5 passados em Leninegrado (actual S. Petersburgo), serão sempre uma das viagens da minha vida.

O autocarro viajava de noite e tentavamos enganar o sono na posição menos desconfortável que encontrassemos. As manhãs revelavam sempre outro país, outra língua, outra moeda. Chegados a cada novo local os motoristas iam dormir e às 24 horas o autocarro seguia novamente viagem. Os dias eram para nos aventurarmos nas cidades. Tomar banho foi em piscinas, saunas e estações de comboio e quando tivemos sorte. Todos prescindimos das condições de conforto em nome da aventura.

França, Alemanha, Holanda, Dinamarca, Suécia, Republicas do Báltico (que já tinham saído da URSS), Polónia, Checoslováquia foram os países onde paramos.

Na URSS ainda governava o Gorbachev, mas já se percebia muito do se veio a passar depois. Na Universidade local a estátua de Lenine estava vandalizada, nos quartos das residências de estudantes cantavam-se baladas do exército branco e afirmava-se com orgulho nacionalidades diferentes da soviética.

O Muro de Berlim tinha caído no ano anterior e a unificação da Alemanha tinha-se oficializada poucos dias antes da nossa partida. A Europa estava a mudar e nós estivemos 5 dias no meio do furacão. As emoções que a viagem despertou não são fáceis de escrever e fico-me pelo registo da data.

Vinte anos depois reunimos parte dos 53 que participaram viagem. Foram muitos os que responderam à chamada. Entre fotografias e vídeos, que nos preservaram para memória futura, recuperamos do baú das preciosidades algumas gravações de um programa com que a Rádio Universitária do Minho cobriu a viagem.



alguns dos presentes 20 anos depois

VIAGENS DA TERRA DOS OUTROS, 04.mp3
VIAGENS DA TERRA DOS OUTROS, 05.mp3
VIAGENS DA TERRA DOS OUTROS, 06.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 07.mp3
VIAGENS DA TERRA DOS OUTROS, 08.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 11.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 12.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 13.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 15.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 16.mp3
VIAGENS NA TERRA DOS OUTROS, 18.mp3

Monday, July 26, 2010

O nome das coisas e outras memórias - O Batateiro



Numa conversa interessante, cheia de informações sobre como era viver na zona de Lamas de Mouro os anos 50, relataram-me o que parece ser a origem do topónimo Batateiro junto à Bouça dos Homens (Peneda). O nome poderá ter tido origem numas plantações de batata feitas na zona. Assim o topónimo será relativamente recente (possivelmente do período do pós-guerra, década de 40). Terão sido ainda estas plantações que motivaram a abertura da estrada desde Lamas de Mouro, local onde eram armazenadas num curioso sistema de silos.

Nessa época, e quase até finais de 50, a rede viária seria praticamente inexistente e feita essencialmente pelos caminhos de carros de bois e trilhos de pé posto que agora percorremos. Depois os serviços florestais que foram abrindo as estradas numa política de satisfazer as suas necessidades e compensar as populações pelos montes. A minha fonte, filho de um antigo guarda-florestal, recorda que na sua infância a estrada terminava nos viveiros dos Serviços Florestais, actuais Portas do PNPG de Lamas de Mouro. Relatou-me que numa ruptura da barragem da Meadinha as águas terão destruído casas no Santuário da Sra. da Peneda e morto pelo menos 2 pessoas, mas o socorro não terá conseguindo chegar de jipe mais longe do que a Portela do Lagarto. Esta era a realidade do nosso território que todos os que posuem mais 60 anos nos podem relatar. Apesar de tudo em 3 gerações o salto foi enorme.