Monday, March 17, 2008

Sobre a voluptuosidade da fadiga e outros apontamentos


Açor, Serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 – Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ao quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa sempre foi generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés foram sempre no meu espírito coisas sagradas e intimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo na paisagem integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito ou do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerês. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespepeare… Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!
Miguel Torga - Diário
II


É a segunda vez que publico esta entrada do Diário. Publico-a novamente porque ela ilustra bem também a minha relação com a "paisagem" e o que experimentei ao percorrer mais uma vez o meu chão de eleição. O prazer de sentir a voluptuosidade da fadiga e depois descansar a olhar a paisagem ao nosso redor é coisa que não consigo explicar facilmente. Apenas os outros "geófagos", para usar a expressão do Torga, o compreendem. Os curtos minutos em que fiquei a olhar as Fichinhas e o vale do Rio da Touça foram simplesmente mágicos. Entro na montanha quase como quem entre num templo. É nela onde melhor me contemplo. É por isso que não a entendo sem estes momentos de reflexão. Depois foi descer e percorrer o mais bonito vale do PNPG. Um percurso tão bonito como duro e perigoso. Para mim a mais bonita ruga de Portugal.

Tuesday, March 11, 2008

Into the wild

auto retrato de Christopher McCandless no "Magic Bus"

Foi um companheiro de caminhadas que falou do filme. Fiquei curioso e procureio-o. É um filme belo sobre um idealismo extremo. Um filme que nos questiona de diversas formas. Realizado por Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer, conta a história verídica de Christopher McCandless. Vale a pena ver e ouvir.

Friday, March 07, 2008

Ariane



Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

MIGUEL TORGA
Prisão do Aljube - Lisboa, 1 Jan 1940