Enquanto não trato a informação sobre o topónimo Gerês, partilho um interessante texto de Manuel Braga da Cruz, que descobri em Histórias de Braga (2014, Cruz Editores), originalmente publicado em Revista de Guimarães, vol LXXXII (1972).
O texto, para além do interesse de tratar da inscrição epigráfica na base de uma das hipóteses para a interpretação do topónimo, tem ainda o interesse de esclarecer sobre as voltas que a ara deu desde a sua descoberta.
Atendendo-se à vasta bibliografia que refere a ara de S. João de Campo, já o era 1972, e comprovando-se a importância da ara para interptretar os topónimos Gerês e Geira, este caso deve servir para reflexão sobre a importância relativa a que dámos às coisas. Afinal, uma "pedra" pode ser muito mais do que isso. Razão para não perceber os argumentos, alegadamente, invocadas pela AFURNA para não permitir a salvaguarda da pedra que será parte de um marco miliário da milha XXIX (1).
Texto de Manuel Braga da Cruz,
«Foi na raina freguesia de S. João do Campo, do concelho de Terras de Bouro, a qual abrange a conhecida "Portela do Homem" bem como o lugar de Vilarinho da Furna, que, no século XVIII, apareceu esta curiosa ara. Ali a vi, há cerca de 30 anos, no quintal do proprietário Sr. Manuel Pires de Freitas que, posteriormente, ma ofereceu, encontrando-se actualmente no átrio da minha residência, depois de ter demorado vários anos no parque dum dos Hotéis do Gerês.
É vasta a bibliografia relativa à inscrição desta pedra granítica mas, por falta de uma exame directo, que dadas as condições de isolamento do local em que se encontrava, em vários casos foram consideradas reproduções mais ou menos deturpadas.
Contador de Argote, em 1974, nas suas Memórias da História Eclesisástica do Arcebispado de Braga (tomo III, pag XX), descreve assim o seu aparecimento: "... no ano de 1742, reedificando-se a Sacristia da Igreja Matriz de S. João do Campo, se descobriu no alicerce da esquina da dita Sacristia uma pedra quadrada de dous palmos de largo, em cada face, e quatro de alto, com seu friso e moldura..." Reproduz a inscrição mas inclui nela um ponto (.) entre o C e o A de OCAERE, que nela não se enontra, e que levou a uma interpretação defeituosa da sua leitura.
Levy Jordão, o futuro Visconde de Paiva Manso, em 1859, na sua obra Portugalliae Inscriptiones Romanas (pág. 33 nº97) reproduz a inscrição com o mesmo erro de Argote. Emílio Hubner, pág. 96 das Notícias Arqueológicas de Portugal, escritas em 1861 e publicadas (em português) em 1971; e em 1869 no II vol, do Corpus Inscriptionum Latinarum (pág 345, nº 2458) estudou também a inscrição. Modificou-a por sua conta, na 1ª linha apresentando ARQUII onde estava ARQULI mas, na parte que respeita à divindade, fez obra positiva, arfimando: "In OCAERE nomem dei ignotur videtur latere, quamquam interpositum est formulae dedicatoriae vocabulis admodum insolenter", isto é, OCAERE parece esconder o nome de uma devindade desconhecida, conquanto, absolutamente contra o costume, tenha sido interposto nas palavras da fórmula votiva.
Leite de Vasconcelos ocupa-se da ara no vol. II de Religiões da Luisitânia, publicado em 1905, a pág. 344, divulgando o ponto de vista apresentado por Hubner. Ao reproduzir a inscrição põe SOMVIT em vez de SOLVIT.
A inscrição da ara de S. João do Campo foi também considerada nas obras seguintes: no tomo VI (1933-34), a pág. 355, dos Arquivos do Seminário de Estudos Galegos; por Vicente Risco, a pág. 22 da sua História de Galicia (1952); por Cuevillas, a pág. 437 da sua obra La Civilizacion Celtica en Galicia (1953); por Blasquez Martinez, no 1º vol. de Religiones Primitivas de Hispania (1962) a pág. 214; e ainda, por José de Encarnação, na sua tese de licenciatura com o título Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em Portugal, em 1969, a pág 208.
A ara e a sua inscrição estão, duma maneira geral, bem conservadas. Uma das faces adjacentes à da inscrição foi regularizada a pico, possivelmente na ocasião de ser incorpurada na parede da Igreja onde foi encontrada, mas sem prejudicar a inscrição.
O "focus" foi também alterado, aumentando-se as suas dimensões para que pudesse comportar plantas decorativas; assim mo arfimou o anterior proprietário da ara, confessando ter sido o autor desta operação.
A inscrição, como se pode verificar na gravura, é a seguinte:
ANICIU // S. ARQULI // VOTUM // OCAERE // SOLVIT
e a interpretação mais provável parece ser:
ANICIUS (filho de) ARQUILIUS DEDICOU (a ara) COM SATISFAÇAO A OCAERE (deusa?).
V. Risco, na obra e passagem atrás citadas, refer como um dos "dioces de los clanes o de los castros" a divindade OCERE, o que me levou a admitir a existência doutra inscrição. Porém, nenhum dos vols. já publicados das Inscriptiones Romanas de Galicia refere OCERE ou OCAERE. Posteriormente, recebi informação idónea de que a citação de V. Risco se referia à ara de S. João do Campo.
O exame das anomalias que possam notar na inscrição (dativo em E por AE, etc) não é para mim, mas para quem, com mais conhecimentos de latim e de epigrafia se queira dedicar ao seu estudo.
A mim só me resta agradecer aos Ex.mos Srs. Coronel Mário Cardoso, Doutor d'Ors, e Dr. José Cardoso, os auxílios que me prestaram para elaborar esta notícia."
(1) após a publicação da descoberta neste blogue (aqui) dei a notícia à CMTB e à AFURNA e foi-me dito depois que a AFURNA não autorizava que a deslocação da pedra que estará novamente submersa.
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