Para os que se interessam pela história dos locais uma crónica que recebi e que pode ser consultada aqui
A investigação histórica é um trabalho apaixonante, embora moroso e paciente. Um trabalho solitário, mas, no final, sentimos qualquer coisa de bom que reconforta e perdura.
Frequentemente, o investigador tem um procedimento semelhante ao de um detective que procura descobrir a origem de um crime juntando as diferentes peças. Momento frustrante acontece quando descobre a pista certa, mas não encontra a última peça do puzle.
Quando há uns anos atrás vasculhei por tudo o que era arquivo, biblioteca ou museu, na peugada de um documento informativo sobre a origem de Lapela, uma aldeia encaixada entre montes graníticos a olhar para a Serra do Gerês, pertencente à freguesia de Cabril do concelho de Montalegre, os resultados não foram animadores. Povoação antiga era por certo. Mas… qual seria o ano da fundação?
Foi um tempo em que procurava descobrir a terra natal de João Rodrigues Cabrilho, o descobridor da Costa da Califórnia, cujo nascimento os documentos apontavam para cerca de 1500. A tradição oral estava enraizada em Lapela. Portanto, era fundamental saber se no limiar do século XVI essa aldeia já existia.
Quanto à sede da freguesia – Cabril – não foi muito difícil descobrir alguns dados importantes. O “Inventário das Igrejas, Comendas e Mosteiros dos reinos de Portugal e Algarves”, realizado nos anos de 1320 e 1321, menciona a paróquia da Igreja de S. Lourenço de Cabril. Lapela não tendo igreja estava ausente. Somente no recenseamento ordenado por D. João III , o “Numeramento Geral de 1527-30”, Lapela aparece mencionada. Foi este o documento mais antigo que descobri referindo aquela povoação.
A tradição oral da naturalidade de Cabrilho em Lapela era um dado que já vinha de longe, mas, para a História vale o que vale. O recenseamento de 1530 confirmava Lapela ter vida nessa data. Havia, portanto, uma diferença de cerca de 30 anos entre o referido documento e a data do nascimento do navegador barrosão. Os mais exigentes poderiam questionar-me: sem um documento histórico como poderia garantir a localidade de Lapela cerca de 1500, isto é, pelo ano do nascimento de Cabrilho? Não podia. Havia indícios. Mas… faltava a última peça do puzle.
Felizmente, descobri depois um documento do século XVI: “Méritos y servicios de Juan Rodriguez Cabrillo”, Achivo General del Gobierno de Guatemala, Anales de la Sociedad de Geografia e Historia, que relaciona o navegador barrosão com Lapela. (1)
“Quem procura sempre alcança”, poderia ser o título desta crónica. Recentemente, quando pesquisava um assunto histórico sobre o reinado de D. Dinis em documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, tive uma enorme surpresa ao encontrar na documentação pertencente à Chancelaria de D. Dinis, referência a um foral concedido por esse monarca a Lapela. Inicialmente pensei numa outra povoação com o mesmo topónimo. Mas não é. Trata-se de Lapela no termo de Barroso. O foral foi outorgado por D. Dinis em 13 de Dezembro de 1327 (Era de César), que corresponde ao ano de 1289 da Era Cristã. (2) (Está datado de 3 de Janeiro do mesmo ano, o foral concedido por D. Dinis a Montalegre.)
Um caso surpreendente porque segundo o documento foreiro, não é um contrato de aforamento individual, mas uma carta de foro outorgada por D. Dinis aos povoadores de Lapela.
São estes os encantos da pesquisa histórica. De vez em quando o investigador é presenteado com uma pérola que o reconforta e o estimula a continuar.
Este foral de Lapela tem um enorme interesse, porque Cabril, paróquia e sede da freguesia, não possui foral de D. Dinis, nem de qualquer outro rei. Das 15 povoações (Segundo as Memórias Paroquiais tinha 16 lugares em 1758) que completam a freguesia de Cabril apenas Lapela teve esse privilégio.
Eram já conhecidos outros forais e cartas de povoamento outorga dos reis D. Sancho I, D. Afonso III , D. Dinis e D. Manuel I, a povoações da Terra de Barroso. Todavia, este foral de Lapela é uma revelação, um testemunho da visão do rei “Lavrador”. Quem imaginaria Lapela, um recôndito lugar em finais do século XIII, localizado nas bandas da Serra do Gerês, despertasse o interesse de D. Dinis para aí fundar uma Póvoa?
A explicação encontra-se, segundo parece, na própria Chancelaria Dionisina. Em 3 de Junho de 1289, chegou ao conhecimento de D. Dinis, estarem os nobres de Barroso a fazer contratos de distribuição de terrenos do património real, com prejuízos para a Coroa. D. Diniz mandou revogar esses contratos resultantes de uma usurpação fraudulenta e retomou a posse das terras por estarem “mal paradas”. (3) O foral de Lapela e outros outorgados pelo monarca na Terra de Barroso após 3 de Junho de 1289, (notar que o foral de Lapela data de 13 de Dezembro de 1289) provavelmente são consequência das fraudes praticadas pelos poderosos senhores de Barroso. D. Dinis marcava assim o território impondo o seu senhorio e, simultaneamente, promovia o povoamento em zonas inóspitas onde se ia demarcando a fronteira beneficiando a defesa e o aumento das rendas reais. À semelhança de outros reis, D. Dinis aliciava os povoadores isentando-os do serviço militar, porque estando em zona de fronteira competia-lhes defender a região.
O povoamento de Lapela (e de outras localidades de Barroso) foi lento por diferentes motivos. A localização da aldeia de acesso difícil é factor a ter em conta. (Nos anos setenta e oitenta do século passado ainda conheci e percorri algumas vezes o precário caminho florestal – em abono da verdade de uma magnífica beleza envolvente – que ligava Lapela a Montalegre. Imagine-se como seriam os acessos à povoação alguns séculos antes.) Além do isolamento, as epidemias verificadas até finais do século XV, nomeadamente a Peste Negra de 1348, originando a diminuição da população por morte ou por abandono da terra, também não serão alheias. Depois, no século XVI, finais do século XIX e, no século XX, surgiu outra “epidemia”. Esta não matava, mas provocou resultados semelhantes. Foi a emigração. Contudo, Lapela tem motivos justificados para se orgulhar do seu passado histórico.
Em 28 de Abril de 1385 com confirmação em 20 de Agosto do mesmo ano, Lapela integrada na Terra de Barroso foi doada por D. João I a D. Nuno Álvares Pereira. Em 1401, o mesmo território fez parte do dote de casamento de Dona Beatriz Pereira, filha de D. Nuno Álvares Pereira com D. Afonso conde de Barcelos, filho bastardo de D. João I. Portanto, Lapela entrou naquele dote. Passou a pertencer à poderosa Casa de Bragança, embora o título de Conde de Bragança fosse concedido a D. Afonso apenas em 1442. Devo ressalvar que em 1483, devido a uma eventual traição do Duque de Bragança a D. João II, este rei mandou confiscar todos os bens da Casa de Bragança, Lapela, obviamente incluída. Foi uma mudança temporária porque D. Manuel I em 1496 reabilitou a Casa de Bragança restituindo-lhe os bens que lhe foram anteriormente confiscados.
Cerca de 1500, nascia em Lapela João Rodrigues Cabrilho o descobridor da Costa da Califórnia quatro décadas depois.
O foral de Lapela outorgado por D. Dinis vai certamente surpreender os barrosões interessados pela História da sua terra, e encher a alma dos habitantes de Lapela que já tinham forte motivo de regozijo: serem conterrâneos de João Rodrigues Cabrilho. Poderão também afirmar com justificada razão: Lapela foi fundada em 13 de Dezembro de 1289 por D. Dinis. Portanto, já existia dois séculos antes do nascimento de Cabrilho.
Romanceando agora dentro de um raciocínio lógico, se D. Dinis não concedesse foral a Lapela, permitindo o povoamento daquela região montanhosa erma ou quase erma em finais do século XIII, o descobridor da Costa da Califórnia seria outro e, provavelmente, Lapela nem existiria no século XVI.
Lapela homenageou João Rodrigues Cabrilho baptizando uma rua da localidade com o seu nome. Um acto que dignifica os seus habitantes. Falta agora honrar D. Dinis, o rei fundador da povoação.
Compete às Entidades representativas do concelho preservar a História desta terra, porque daqui a quinze dias sairá o número seguinte do jornal com temas novos que, obviamente, farão esquecer o assunto que hoje me trouxe aqui. Um Povo sem memória é um Povo sem alma…
NOTAS:
(1) “João Rodrigues Cabrilho um Homem do Barroso?”, de João Soares Tavares, Edição da Câmara Municipal de Montalegre, 1998, págs. 43,44 e 45.
(2) Chancelaria de D. Dinis, Livro I, fl. 267, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
(3) Chancelaria de D. Dinis, Livro I, fl. 258, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
No comments:
Post a Comment