Thursday, January 18, 2007

Gerês, Vilarinho da Furna, 25 de Julho de 1945

A caminhada de Domingo fez-me recordar uma entrada no Diário de Miguel Torga. Ao reler o diário pareceu-me que o devia transcrever por inteiro. Julgo que Miguel Torga se refere também a este dia num dos volumes da Criação do Mundo. Há pelo menos um relato de um encontro com este pastor, julgo que numa ida dele ao Pico da Nevosa, que merece ser lido em conjunto e que transcreverei mais tarde.

Gerês, Vilarinho da Furna, 25 de Julho de 1945

Todo o dia pela Serra Amarela, a percorrer vezeiras, a visitar fojos de lobos e a quebrar a cabeça no enigma de quinze ou vinte casarotas perdidas numa chapada, que ou são túmulos de uma necrópele celta, ou habitações pastoris de verão, ou acampamento de tropas romanas, ou armadilhas que o diabo pôs ali para tentação de almas ignorantes. Não sei se alguém de saber já por lá passou e viu aquilo. Uma inscrição em caracteres estranho vai-se apagando no granito, os pastores vão atirando ao chão as lages que cobrem os dolmens ou as construções, e daqui a algum tempo não restará de todo o mistério nenhum sinal. Mas talvez seja melhor assim. Os mistérios são o alimento natural do tempo. E quando os anos os digerem, fica tudo em paz.

A Serra Amarela é um dos ermos mais perfeitos de Portugal. Situada entre o Gerês e o Lindoso, as suas dobras são largas, fundas e solenes. Sem capelas e sem romarias, cruzam-na os lobos, os javalis e as corças. A praga dos pinheiros oficiais ainda lá não chegou. De maneira que mora nela o sopro claro das livres asas e o riso aberto dos grandes sóis. Não há estradas, senão as da raposa matreira, nem pousadas, senão as cabanas dos pastores.É Portugal nuclear, a Ibéria na sua pureza essencial e granítica. Um pé de azevinho aqui, urzes milenárias acolá, um carvalho numa garganta, nenhum coração de entre o Douro e Minho pode deixar de se sentir aquecido e reconfortado em semelhante chão. O guia, um contrabandista celta, loiro e de olhinho azul, é um manancial de saber caseiro, a cultura autêntica de um povo.
- O Senhor já viu nascer cabelo nas unhas? – pergunta-me ele.
- Não.
- Pois se não é sítio dele!
Isto por causa dos excessos e das incompreensões dos serviços florestais, que estão a matar o pastoreio e a reduzir algumas terras montanhesas à miséria.
- Vemos Deus com olhos que não temos … - diz a respeito da sua crença.
E ainda estou a apurar se foi o cura que lhe ministrou a fórmula ou se é pessoal, e já vem esta prevenção salutar:
- Deite-se na pedra, que é melhor! Olhe que uma fraga não respira! Na terra apanha uma carga de reumático…
A hora do almoço chegara, e eu ia-me atirar exausto para o chão.
Mas quando ele me assombra inteiramente, é à tardinha, ao cair da noite, no momento em que um grande rebanho comunitário de duas mil e quinhentas cabras entra na povoação, e do alto do fraguedo me mostra o espectáculo. Está tudo transfigurado. O Pé de Cabril, a Borrageira, o Altar de Cabrões e a Calcedónia, ao longe parecem deuses solenes, com as cabeças divinas envoltas na fofa bruma das nuvens. O vale do Homem, no fundo fértil, verde e brilhante, com lagos de água cristalina a reluzir de onde em onde, parece a terra da promissão. Um silêncio preservado rodeia tudo de paz.E o meu contrabandista, então, perde-se no meio de tanta grandeza e de tanta liberdade, e monologa:
- Acredite que não trocava a minha vida pela de nenhum rei! Gosto tanto destas penedias, que se me tirassem um pedaço a uma, dava conta!

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