Wednesday, February 21, 2007

O outro relato

Procurei nos volumes da “A criação do Mundo”, uma referência de Miguel Torga a uma jornada na Serra Amarela, também relatada nos seus Diários, que já transcrevi anteriormente. Encontrei-a no quinto volume “O sexto dia”. Transcrevo-o para completar o anterior, mas também porque reencontrei nele a confirmação em como a pedestrianismo não é apenas uma actividade física. Caminhar e descobrir os antigos caminhos, as povoações mais esquecidas, os montes e serras, também uma actividade de cultura e profundo apreço pelo nosso património, seja ele ambiental, construído e humano.

“Sim, a vida profissional corria-me agora bem, até bem demais, por se tornar absorvente. Mas não tinha saúde. E via-me obrigado a procurá-la de todos os jeitos. Fiel devoto dos métodos naturais, mal chegava o Verão, era sobretudo junto das nascentes que me perdia e achava, mais seguro ali do que nas mãos dos colegas, por meus pecados sempre agressivas. Um a um, haviam-me já tirado vários órgãos combalidos. E, a fugir de uma tal sanha operatória, que me retalhava o corpo e a alma, acabei em estagiário da maior parte das termas de Portugal.
Essas prolongadas ausências do consultório eram nocivas ao médico, que entretanto perdia clientes, mas favoreciam o poeta. No intervalo dos tratamentos corria Seca e Meca, numa aprendizagem nunca acabava da realidade pátria, que descrevera já de mil maneiras e continuava a estudar incansavelmente. Precisava cada vez mais de enraizar no húmus nativo. O que escrevia ficava insípido sempre que lhe faltava o sal da terra. Eu próprio ficava espantado, ao fim de cada descoberta, das potencialidades de sugestão criativa contidas em pormenores aparentemente insignificativos, que podiam ser o pelico dum pastor alentejano, a faixa escarlate dum campino do Ribatejo, a copa sem porte de uma figueira algarvia. O menir erguido num planalto, a pintura rupestre num abrigo, o dólmen solitário num ermo, o castro desmoronado num outeiro, a inscrição ideográfico num penedo eram recados do passado que, mesmo enigmáticos enriqueciam o espírito. Até do pão e do vinho que se comiam e bebia em cada lugar se tiravam ensinamentos preciosos. Para já não falar na experiência de certos encontros ocasionais que nos revelam muitas vezes surpreendentes meandros da alma humana, mesmo quando de momento não se lhes descortina verdadeira significação, como aconteceu com o Feixa. A águas no Gerês, tive a notícia da existência de um velho fojo numa das lombas da Serra Amarela. Disposto a conhecê-lo, dirigi-me à aldeia mais próxima, Vilarinho das Furna, à procura de um guia que me havia sido indicado, pelos modos o maior contrabandista das redondezas. Bati-lhe à porta e veio abrir um celta atarracado, loquaz, de olhos azuis e grandes bigodes loiros. Era o próprio. Contratei-o, tomou conta da mochila do farnel e metemo-nos a caminho. Depois de o ouvir discretar por sentenças sobre os mais variados assuntos, tentei conhecer pormenores da sua vida arriscada, que sabia de aventuras. Jurou a pés juntos que eu estava enganado, que me tinham informado mal, que era um patriota, que nunca atravessara a raia com o valor de uma agulha, que o Anjo da Guarda o defendesse de prejudicar num real sequer o país em que nascera.
Desconcertado, mas com a curiosidade ainda mais aguçada, recorri a todos a curiosidade ainda mais aguçada, recorri a todos os argumentos para decidir a falar. Fiz o rasgado elogio dos seus colegas de ofício e acrescentei que eu próprio me sentiria muito honrado se ele fosse um deles. Nada. Perdi o meu rico latim. O Feixa continuou a ser um cidadão exemplar.
Resolvi então ir às do cabo. E chamei-lhe cobarde, já que não tinha a coragem e a dignidade de assumir os próprios actos.
Emudeceu e não disse mais palavra todo o caminho.
Chegados ao local, examinei minuciosamente a ciclópica construção em V, que terminava num grande fosso onde as feras acabavam por cair e morrer às mãos dos batedores, admirei a tenacidade e a astúcia do homem montanhês e, como eram horas, junto de uma fonte que havia perto, sentámo-nos para almoçar.
Sempre calado, o Feixa tirou do bolso uma grande navalha de ponta e mola, abriu-a e pôs-se a cortar com ela o pão e o bife, a olhar-me de soslaio de vez em quando.
Findo o repasto, iniciámos o regresso, no mesmo silêncio pesado.
Subitamente, o meu companheiro quebrou a mudez. Sem mais preâmbulos, começou a contar. Que sim era contrabandista, que nunca tivera outro modo de vida, que fora ele que metera em Portugal todo o armamento dos monárquicos na altura das incursões do Norte, que chegava a passar para Espanha manadas inteiras de gado, que se gabava de a pregar na menina dos olhos ao mais pintado guarda fiscal. E ia-o provando de mil maneiras.
Ficámos amigos. Sempre que nos víamos era uma festa.
Alguns anos depois, seguia eu de automóvel na companhia de Jeanne pela estrada florestal da fronteira, quando o Feixa apareceu.
– Ó Feixa!
– Ó senhor doutor!
– Que anda você por aqui a fazer?
– A ver uns garranos que trago no pasto.
– Venha daí à Nevosa…
– Dessa está bem livre. O senhor já lá foi?
– Não. É a primeira vez.
– Então desista. Aquilo é uma geladeira. Morre-se de frio. E também ainda estou em jejum…
– Venha e come connosco.
Acabou por entrar no carro, subimos até aos Carris e depois fizemos a pé o resto da escalada.
No alto, abrigados no recôncavo de um penedo, sentámo-nos e a Jeanne pôs a mesa e repartiu a merenda. O Feixa tirou do bolso a sevilhana, abriu-a e ficou pensativo. Por fim, desabafou:
– Pois é verdade, senhor doutor, ávida tem que se lhe diga. Quando penso que somos tão amiguíssimos e já estive para o matar!
– A mim?! A sério?!
– A sério. Com esta navlha. Foi por um triz. Lembra-se do primeiro dia em que nos conhecemos?
– Claro.
– E recorda-se do que me chamou quando eu neguei que era contrabandista?
– Quis espicaçá-lo…
– Reparou que eu não disse mais palavra de aí em diante. É que ia a magicar: dou cabo dele ou não? À hora do almoço, assentei que sim, que o sangraria logo a seguir num sítio azado. Mas Deus teve mão em mim. Não, Feixa, pareceu-me ouvir, quando ia mesmo a perder-me. O homem só disse a verdade. És mesmo um covarde. Que outro nome merece quem se envergonha da sua condição? Cada qual é o que é e deve confessá-lo honradamente. Resolvi então contar-lhe tudo. E não me arrependi. O senhor era de confiança.
– E se não fosse?
– Voltava tudo ao princípio…Santa paciência…”
Ontem estive algum tempo a navegar por cartas antigas que me arranjaram, retratam a paisagem que Torga conheceu. Tentei imaginar que caminho teria feito para chegar ao Fojo saindo de Vilarinho da Furna. Nos próximos tempos vou tentar reconstruir esse caminho e aproveitar para conhecer um pouco melhor a Serra Amarela.

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