Os Serviços de Documentação da Universidade do Minho (SDUM) realizaram no passado Sábado uma caminhada que me deu um enorme prazer. Realizada em ritmo de passeio, num percurso curto entre Campo do Gerês e a vila do Gerês, a caminhada associou a leitura de textos de Miguel Torga à montanha que ele percorreu.
Inserida nas actividades dos SDUM por ocasião do Centenário de Miguel Torga, a caminhada decalcou numa anterior realizada pela CM Terras de Bouro. O percurso acessível permitiu a participação caminheiros menos experimentados, mas não defraudou os mais experientes. Em locais determinados, com a colaboração do Sindicato da Poesia de Braga, foram lidos poemas e textos retirados do Diário de Miguel Torga. Escutados naquele enquadramento os textos ganharam uma outra dimensão. Não é segredo que Torga é o meu escritor favorito. Poeta era como ele se considerava, mas a sua obra é muito mais que poesia. A sua prosa não é inferior à sua poesia. O seu Diário, que comecei a ler mais tarde, é extraordinário. Reflexões diversas sobre quase tudo e com uma actualidade impressionante. A Criação do Mundo, ainda que na primeira pessoa, é um impressionante retrato de um país. Um retrato que nem sequer escondende algumas das contradições pessoais. Obra de um canibal, como chega a reconhecer. Miguel Torga amou como poucos a paisagem de Portugal. Amou-a com os seus defeitos e misérias. Não a amou porque a idolatrava, mas porque sentia que a ela pertencia. Não a venerava no altar da história e das glórias pátrias. Amava-a carnalmente.
Foram muitos os textos lidos e não posso transcrever todos. Deixo apenas dois que ilustram bem o que pretendi salientar.
"Castro Laboreiro, 6 de Agosto de 1948
Não, não terei a hipocrisia de dizer que seria aqui o meu paraíso, aqui que não há papel, nem tinta, nem cinema, nem livrarias, nem cafés, nem nehum dos tóxicos de que necessito. O homem põe, mas a vida dispõe. A cidade é como prostitutas: o seu amor é falso, mas vence o de qualquer mulher honrada. Agora que estas pedras, estes gados, estas alturas que vivem recalcadas no meu sangue, não há dúvida. Aquele desgraçado Boileau, que pouco ou nada sabia de poesia, disse uma verdade imorredoira:
Chassez le naturel, il revient au galop.
Mal apanho uma aberta, sou como um galgo pelos montes acima. Não posso dizer o que sinto, nem o que procuro. Mas as pedras parecem-me fofas debaixo dos pés. A parte mais íntima de mim encontra-se e expande-se. Citadino e perdido, sou na verdade uma montanha comprimida."
"Coimbra, 7 de Dezembro de 1949
Não é por nacionalismo que seria uma tolice. É por funda necessidade cultural que peregrino a pátria. A realidade telúrica dum país, descoberta pelos métodos dum almocreve, é muito mais instrutiva do que trinta calhamaços de história, botânica ou economia. Sem acrescentar que é com o seu próprio corpo que o homem mede o berço e o caixão...
Eça falhou n'A Cidade e as Serras porque nunca calcorreou as serras. Camilo é muito mais autêntico porque atolava os pés no barro que moldava.
Temos que conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preconceitos de nenhuma ordem. Amá-la, sim, mas objectivar-lhe tanto quanto possível os defeitos e as virtudes, para que o nosso afecto seja fecundo e progressivo.
Portugal tem sido visto ou por arqueólogos ou por obececados. São horas de tentar compreendê-lo doutro modo. Nem o cisco dos cacos, nem o delírio histórico. Uma radiografia profunda, que revele a solidez do esqueleto sobre o qual todo o corpo se mantém."
Há caminhadas que simplesmente me atraem como actividade física. Ir mais longe, mais alto. Há caminhadas que valem pela companhia, por uma vista, por uma pedra. Esta valeu por ter escutado Miguel Torga como não saberia ler.
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