Wednesday, March 27, 2013

Crónica de uma caminhada que não aconteceu

entrada nas termas do Gerês (já com a estrada)

Nestes dias de chuva resolvi partilhar uma pequena pérola que descobri quando pesquisava sobre a área do PNPG, mais propriamente sobre  visitantes célebres. No caso pesquisava sobre Ramalho Ortigão que segundo José Thomaz de Sousa Pereira, o regente florestal que iniciou o repovoamento florestal do Gerês no final do século XIX, terá sido, "um amador de excursões que nunca perdia o ensejo de passar um dia  ou uma noite na serra". Ernesto de Vasconcelos, em «Ramalho Ortigão e o Gerês» descreve-o como um "entusiasta de caçadas, integrava caravanas de caçadores, com matilhas, viveres e barracas para acampar na serra"  e considera-o um "percursor das caravanas de turismo [...] percursor das excursões pedestres, envergando o seu  «knicker-bocker» de amplo corte inglês, calçando os já aludidos sapatos ferrados e empunhando bordão sólido, num derivado do bengalão."

O próprio Ramalho Ortigão, em «Banhos de Caldas e Águas Minerais»(1875), considera que aos "dezasseis anos, era um rapaz bisonho e sem nenhum uso do mundo, mas tinha o hábito de longas caçadas e o meu pulmão e as minhas pernas eram então de força de quinze a vinte léguas palmilhadas sem estropiamento e sem fadiga".

Uma aptidão que lhe terá valido o convite para uma caravana que deveria "subir ao alto mais píncaro do Gerês" e que seria composta por Almeida Campos (o organizador), José Barbosa e Silva, Evaristo Bastos, Arnaldo Gama, Camilo Castelo Branco e António Girão. 

Uma excursão que não se terá realizado mas que recordava por ter sido "premeditada [...] em bases tão pitorescas".

A caminhada segundo as palavras de Ramalho Ortigão:

"Tinham-se feito longos planos para essa viagem. O traje seria uma blusa curta de flanela, sapatos ferrados, polainas de couro afiveladas até ao joelho, e chapéu de feltro com uma pluma.

Levaria cada um a sua mochila com roupa branca e estojo de lavatório. Haveria de ser comprado um burro que levaria a tenda, sob a qual se havia de pernoitar na serra, e bem assim as indispensáveis munições de boca, a bolacha e as conservas.

Em uma das reuniões que se celebraram para este fim, Camilo propôs que se comprassem dois burros: um levaria as munições; sobre o outro seria colocada a Mulher dos calos, uma pedicura célebre que então florescia no Porto e cuja perícia Camilo entendia que devia acompanhar até ao fim do mundo os pés da gloriosa aventura que se projectava."

Sobre o percurso idealizado para esta "gloriosa aventura" Ramalho Ortigão não esclareceu, mas a expressão "alto mais píncaro" faz supor que  o destino seria a zona das Abrotegas. Tal como mais tarde a revista Ilustração Portugueza escolheria para montar o acampamento para a sua caçada de 1908 e onde os Serviços Florestais também pernoitavam.

Apesar do tom humorístico com que o relato foi escrito, considerando que a excursão deveria ter ocorrido pelo ano 1853 - Ramalho Ortigão nasceu em 1836 e este convite terá surgido por volta dos seus 17 anos, esta pequena crónica permite ainda perceber as diferenças com que hoje olhamos para a serra do Gerês e para os desportos de montanha.

Algo que não devemos estranhar se tivermos em consideração que, aceitando a data proposta de 1853, por essa altura as Caldas do Gerês  apenas eram habitadas na temporada compreendida entre o S. João e o S. Miguel.

Para perspectivarmos as diferenças devemos ainda considerar que:

Em 1830 a viagem entre Braga e as Caldas demoraria 7 horas, sendo a ultima parte do percurso muito difícil.

Em 1852 os caminhos eram tão inseguros que os viajantes pediam em cada lugar  que os acompanhassem até ao seguinte, onde renovanvam escolta. Eram os tempos do «Rei Preto», um salteador que espalhou o terror e que terá sido fuzilado na Portela do Homem após ser capturado na Galiza.

Nesse mesmo ano a Rainha D. Maria II terá desistido de uma viagem ao Gerês após receber informações dos caminhos. Apesar de lhe terem sido disponibilizados os serviços de dezasseis condutores de cadeirinhas para as últimas duas léguas, preferiu receber os habitantes do lugar em Guimarães.

Só na década de 1860 «o Botequim» e a sua mulher se mudaram de Vilar da Veiga para o Gerês, sendo os seus primeiros habitantes permanentes. No final da década já existiriam trinta e cinco casas no local.

Por volta de 1884 saia-se de Lisboa no comboio que partia à noite, chegava-se a Campanhã pela manhã, onde se tomava o pequeno almoço, chegava-se a Braga depois da uma da tarde, onde se fazia nova refeição e depois tomando a deligência do correio, com as últimas léguas feitas a cavalo, chegava-se às Caldas a tempo de cear. Por essa altura o Gerês já seria frequentado por cerca de duas mil pessoas.

Só por volta de 1885, pouco tempo antes da serra ser submetida ao regime florestal, ficaria concluída a estrada para o Gerês.

Ramalho Ortigão terá visitado o Gerês pela primeira vez aos 21 anos (1857). Sobre as Caladas do Gerês, em 1875, integrado em «Banhos de Caldas e Águas Minerais», transcreveu o relatório, acerca das águas minerais do Minho, apresentado ao governo por Agostinho Vicente Lourenço: "a povoação é muito insignificante. Compõem-se principalmente de pequenas casa, em grande parte de madeira, habitadas por pastores em algumas estações do ano, e abandonadas durante o rigor do inverno".


 um acampamento dos serviços florestais nas Abrotegas em 1893

 um grupo de excursionistas à serra em 1892 
vista sobre as Caldas do Gerês

caminho para Leonte

acampamento da revista Ilustração Portugueza nas Abrotegas - 1908

fotografias: Ilustração Portugueza (1908, números 127, 132 e 139)

1 comment:

Carlos M. Silva said...

Olá

Belo artigo numa mistura (quando tudo era possível ..pois o tempo de viagem ..era o tempo humano!) entre a arte da escrita e a arte da natureza.
Belo artigo.

Carlos M. Silva